segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Lasca de sonho à beira-mar


O menu era tentador, com todos os ingredientes presentes: sol radiante, feriado de meio da semana pedindo para ser transformado em feriadão. Uma oportunidade impossível de ser desperdiçada, afinal, a vida é curta, polvilhada de pedras no meio do caminho, e, para enfrentá-las e pulverizá-las, é preciso saber aproveitar os raros momentos de deleite nos quais recarregamos as forças vitais para seguir adiante. Assim sendo, partiu praia!
O porta-malas recheado com o acotovelar das esteiras, dos chapéus, dos guarda-sóis (para tecer latifúndio de sombra na areia onde abrigar as alvuras de minha pele de fada), das cadeiras dobráveis, das sacolas térmicas, dos maiôs e congêneres, das toalhas, das toalhonas e das toalhinhas, dos tubos de protetor solar e dos cremes hidratantes a envolverem o ambiente do carro naquele característico perfume praiano cujo resultado é a produção de uma imediata sensação de paz e descompromisso, em pleno novembro. Tem coisa melhor? Ah, tem, e é isso que vou relatar a seguir.
Soberanamente estabelecido em meus domínios praianos na areia, guarda-sol plantado e sombreando, atarraxado o sentante na cadeira e livro no colo, pus-me a observar o mar e a paisagem, extasiado. Eis que de repente, surgida por detrás de minhas praianças, concretiza-se a fantasia latente nos mais recônditos pensamentos de um homem sentado à beira-mar: uma bela loira, com os atributos de sua sensual feminilidade engaiolados dentro do par de cândidas peças do biquíni, se aproxima e me pede, em voz cantada, para que eu espalhe protetor solar em suas costas. Ato contínuo, ela se agacha à minha frente, expondo a superfície da delicada e morna pele que terei de espalmar em movimentos circulares espalhando o creminho. Resoluto, dou início ao processo, administrando a velocidade da mão espalhante para que não o faça tão rápido a ponto de impedir-me de usufruir o momento mágico, e nem tão lento que cause estranhezas. É preciso também aplicar um certo equilíbrio na pressão do toque: nem tão brusco a ponto de assustar e nem tão delicado a ponto de não fazer sentir a mão que espalha nas bronzeantes costas espraiadas. Estou imerso nessas reflexões, desempenhando dedicadamente a delicada tarefa, quando ouço-a dizer, em sua vozinha de praia: “Uma das tuas unhas está lascadinha, não é mesmo, amor?”.
Meu deus do céu, que mico: eu estava raspando a pele dela! O castelo de areia teria desabado por completo, não fosse nossa risada cúmplice e em sintonia.  Afinal de contas, esposa que é esposa nunca deixa nada passar em branco, não é mesmo?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul,  em 19 de novembro de 2018)

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