segunda-feira, 26 de novembro de 2018

"Meu Deus, há quem o ame!"


A jovem francesa Charlotte Corday (1768 – 1793) nutria um ódio mortal por Jean-Paul Marat (1743 – 1793). Odiava-o a partir das profundezas de seu coração e de suas convicções pessoais. Educada em um convento católico e criada no seio da aristocracia, Charlotte via-se diretamente atingida em seus valores pela Revolução Francesa, que fizera seu mundo ruir a partir de 1789 com o movimento capitaneado por Marat e seus principais parceiros, como Danton e Robespierre. Monarquista, sofria com as notícias da morte do rei Luís XVI e das execuções dos contrarrevolucionários na guilhotina. Ela era uma contrarrevolucionária e odiava Marat, em quem personificava a manifestação do mal.
Marat era o mal e precisava ser eliminado. Foi com essa convicção que Charlotte bateu à porta da casa dele em uma noite de sábado, em Paris, 13 de julho de 1793, aviada de um punhal e de uma convicção. Por meio de um subterfúgio, adentrou os domínios do poderoso e afamado líder revolucionário, encontrando-o nu na banheira, onde obtinha alívio imerso em banhos preparados para combater a doença dermatológica que o afligia. Apresentou a ele uma lista contendo o nome de contrarrevolucionários e, ao ouvi-lo dizer que os enviaria à guilhotina, não titubeou: apunhalou Marat no peito, assassinando-o ali mesmo. Quatro dias depois, Charlotte era julgada e guilhotinada por seu crime, entrando para a História.
François Ponsard (1814 – 1867), poeta e dramaturgo francês, revisitou o drama real em uma peça intitulada “Charlote Corday”, que estreou em Paris em 1850. Nela, a poderosa cena da morte de Marat dá lugar à liberdade poética quando o autor atribui a Charlotte um breve momento de hesitação frente ao ato que está prestes a cometer. Ao bater na porta do endereço de Marat, pronta para matar aquele em quem via a personificação da monstruosidade em pessoa, Charlotte é atendida pela esposa do líder revolucionário. Chocada, ela recua e exclama para si mesma: “Meu Deus, é a mulher dele, há quem o ame!”. Por perceber haver quem amasse aquele a quem considerava um monstro, Charlotte quase abre mão de seu intento, mas acaba levando-o a cabo ao ouvir Marat determinado a condenar à guilhotina os desafetos da Revolução. O drama, no fim, obedece aos fatos históricos. Mas as entrelinhas do texto artístico sugerem uma reflexão concernente: sempre há quem ame os nossos desafetos, que, apesar de tudo, também são humanos. Precisam ser combatidos no campo das ideias, claro, mas não podemos nos rebaixar a agir, frente a eles, como os  monstros que os julgamos ser. Afinal, também sempre há quem nos ame.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 26 de novembro de 2018)

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