Quem, senão o Pato Donald, seria
capaz de dedicar energias para, sentado em uma poltrona em casa, mergulhar a
fuça (ou o bico) na leitura de uma antologia intitulada “Contos Chatos”? Por
mais que sejamos apreciadores de antologias (e somos, né madama, a senhora e eu),
jamais optaríamos por voltar nossas atenções e nosso tempo a uma coletânea que
prometesse, já a partir do título, aprofundar nosso tédio com o enfileiramento
de ficções enfadonhas.
É preciso ser muito masoquista
para fazê-lo. Ou ser pato, como o Pato Donald, que empunha um volume assim
intitulado no quadrinho de abertura da história “Eu fui um canguru”, publicada
pela primeira vez nos Estados Unidos em 1947 e escrita e desenhada por Carl
Barks (1901 – 2000), um dos mais talentosos quadrinistas da Era de Ouro dos
Estúdios Disney. O humor sutil era uma das marcas registradas de Barks,
sublinhado pela consciência de estar desenvolvendo tramas de personagens
transmorfos que, no final das contas, representavam a essência da alma humana.
Seu Pato Donald é um ser azarado, irritadiço e impulsivo, apenas revestido na
figura de um pato, permitindo ao autor passear seu olhar sensível de cronista
para expressar as nuances da vida humana através da arte narrativa batizada no
Brasil como “histórias em quadrinhos”.
Quem de nós – pato trajado de
gente, ou gente camuflada de pato – teria o desprendimento de ler uma antologia
de contos assumidamente chatos? Que editora concordaria em publicar uma obra
dessa natureza? Quem escreveria deliberadamente um conto chato? Qual escritor
abonaria a proposta de ter um de seus escritos inserido em uma antologia
desabonadora? Que curador assumiria a (temerária) tarefa de selecionar os
textos e classificá-los como chatos, expondo-se à ira dos autores eleitos? Nesse
último tópico, Barks nos ajuda, conferindo nome ao pretenso curador da coletânea
que arrebata (ou aborrece) Donald: trata-se de “Tédius Rotinum”.
No fundo, o que Barks talvez
esteja propondo, ao inserir sutilmente a pequena piada “en passant” no
quadrinho de abertura da narrativa (atendendo à máxima do bom piadista: “quem
viu, viu; quem não viu, que siga adiante”), é uma reflexão sobre o choque que
nos causaria se a vida real fosse composta pela expressão sistemática da
sinceridade absoluta. Ninguém quer ser, resolutamente, autor de um conto chato,
apesar de sabermos que eles (os autores e os contos) existem, não é mesmo,
madama? Ao menos, em Patópolis, eles são escritos, publicados e lidos. Já aqui,
no mundo real, vamos nos contentando com estas crônicas de segunda...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 6 de maio de 2019)
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