segunda-feira, 27 de maio de 2019

Convite para debelar o frio

“Mas, homem, entra! Chega mais perto do balcão. Tá muito frio aí na porta!”. Verdade. Ele tinha razão. A manhã estava enferruscada, típica outonal da Serra Gaúcha. A cerração baixada como um manto sobre a cidade desde cedo e avançando manhã adentro, sem sinal de intenções de arrefecer em espessura. Enxergava-se poucos palmos à frente do nariz, e o meu é suficientemente avantajado para servir de GPS e antena protetora frente a obstáculos repentinos como a sombrinha da senhorinha que vem firme na direção oposta, apontando direto para o centro dos meus óculos. E frio. As baixas temperaturas já se reapresentando como companhias perenes ao longo dos próximos meses que nos separam do já ansiado vindouro veraneio. Sim, melhor entrar e sair do frio. Entrei.
O estabelecimento é antigo, tradicional e central. A porta dá rente à calçada e o balcão fica a meio passo da entrada. Debruça-se sobre ele para tirar do bolso o controle remoto do portão da garagem e se pede ao moço que troque a pilha. Ele então se some lá para dentro a fim de executar o servicinho que, quando protelado, gera minutos de raiva na garagem enquanto o portão não obedece ao comando inerte fruto da pilha fraquinha. Durante a espera, o vento empurra o frio contra as costas e gera arrepios involuntários que o proprietário do estabelecimento detecta, por detrás de uma mesa, fazendo então o convite para que eu avance rumo ao calor e ao aconchego. Saio da porta e entro.

Não satisfeito, o dono aponta para uma garrafa térmica disposta em um dos cantos do balcão: “vai um chá quentinho?”. Vai, sim. Aceito o chá. Quentinho mesmo, restaurador, sorvido de dentro de um copinho plástico. O moço retorna com o controle pilhado. Pago a ninharia, despeço-me e retorno ao frio e à vida da rua, com a pilha do controle renovada e a bateria de minha fé na humanidade recarregada. Custou pouco ao dono da loja ser atento e gentil. Custou o preço de um copinho de chá e de um convite acolhedor. Investimento mínimo com retorno astronômico, pois ganhou um cliente para a vida inteira. Jamais trocarei pilha em outro estabelecimento na cidade que não seja ali, enquanto existirmos eu, o lugar e os controles remotos. Afinal, sou viciado em bom trato. Faz toda a diferença. Especialmente nesses dias em que o frio do clima compete com a frieza que regela as almas das gentes, a despeito da estação vigente no calendário. Acolher ainda é a melhor estratégia de marketing. O custo pode ser caro ou barato. Depende do quanto cada um tem acumulado em termos de patrimônio humano para oferecer à clientela.

(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 20 de maio de 2019)

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