Eu não sou descendente de italianos e nem nasci na colônia. Sou um guri da cidade, proveniente de terras quase missioneiras, tetraneto de imigrantes alemães. Uma rápida passada de olhos pelo formato de minhas mãos logo denuncia que jamais empunhei o cabo de uma enxada e a planta de meus pés se esfola ao contato com o mais simples pedregulho ou com a rosetinha mais mixuruca. Picada de mosquito cria ferida de guerra em minha pele e me escondo do sol como um vampiro recém-nascido.
Com todas essas características a atulhar a minha bagagem genética e cultural, eu tinha tudo para me sentir um peixe fora da pesqueira quando aportei por essas terras caxienses, 20 anos atrás, atraído, como tantos outros antes de mim ao longo de toda a história dessa região, por alvissareiras perspectivas de trabalho e de vida que por aqui se apresentavam (vai ver eu também sonhava com a “cocagna”). No entanto, finquei raízes e acabei me aquerenciando de tal maneira por aqui que, hoje, me sinto mais caxiense do que qualquer outra coisa, plenamente integrado aos costumes e ritos da Serra Gaúcha, atuante na comunidade que me acolhe e orgulhoso de fazer parte dela.
Entre diversas outras razões, tenho certeza de que o aspecto gastronômico característico de Caxias do Sul e de toda a região de colonização italiana exerceu papel crucial para o meu rápido e profundo processo de inserção no cotidiano dessa cidade, tão bem representado periodicamente pela ampla programação cultural decorrente das edições da Festa da Uva. Trocando em miúdos, fui capturado não só, mas também, pelo estômago. Basta ver que o Marcos de 26 anos e 61 quilos que veio para cá ficou duas décadas e 16 mil gramas distante deste ser que hoje perambula, faceiro e mais rechonchudo, pelos restaurantes e cantinas que oferecem o saboroso, tentador, farto e inesgotável cardápio típico italiano, que tanto aprendi a apreciar.
Foi por aqui que conheci e passei a saborear iguarias como o queijo à milanesa, o radicci cotti, a carne lessa (olhava aquilo com o canto do olho e a boca retorcida, e hoje puxo o prato todo para o meu lado), a sopa de agnolini (e tudo bem que chegue à mesa batizada de capeletti, sorvo do mesmo jeito, com barulho e tudo), o grostoli (uma tia de minha esposa,
Isso sem falar no vinho, claro. Foi vivendo aqui que meu paladar evoluiu dos primitivos “vinhos de formação” de minha adolescência como Katz Wein, Liebfraumilch e os primeiros cabernet franc, para a apreciação dos excelentes varietais e espumantes produzidos na região. Colaborou para tanto a participação em cursos de degustação promovidos pelas vinícolas, o que faz com que hoje o ato de saborear um bom “biccierotto de vin” se transforme em um rito de prazer e respeito pelo fruto do esforço de tanta gente, por tantas gerações.
A Festa da Uva que nós, caxienses, protagonizamos a cada dois anos, mais do que apresentar o resultado da pujança e das tradições de um povo, se configura em um momento em que celebramos também o simbolismo da prosperidade que se expressa em uma mesa farta, aspecto cultural cultivado por onde quer que se pare para fazer uma refeição por essas plagas. É ao redor de uma boa mesa que a alegria de viver e nossas melhores características afloram. Quem comete a agradável ousadia de apreciar, durante a Festa, o cardápio típico da colônia servido no Salão Paroquial, sabe bem do que estou falando. Salute e buon appetito a tutti quanti!
(Publicado no jornal Pioneiro na seção especial intitulada "O Cronista na Festa", em 28 de fevereiro de 2012)
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