quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Amanhã fico bom

Quando eu era criança, acreditava piamente que meu avô materno era uma espécie de super-herói, invulnerável e imbatível. Eu escutava as histórias que ele contava e o enquadrava como um ser especial entre os personagens do mundo que aos poucos ia se abrindo aos meus olhos. Nesse aspecto, eu estava coberto de razão.
Certa feita, na fazenda que ele tinha no interior de São Borja, passou a manhã inteira serrando toras de madeira com a motosserra e só parou quando minha avó, por volta de onze horas, pediu que ele matasse um pato para ser transformado em almoço. Apressado, resolveu fazer o serviço utilizando um revólver calibre 22 (tenente reformado do exército, possui licença especial para porte de armas). Escolheu aquele aparentemente mais saboroso e fez a mira. Porém, as mãos tremiam devido ao esforço contínuo com a motosserra, e decidiu apoiar os braços na forquilha de uma árvore, envolvendo a arma com as duas mãos.
 Refez a mira no pato e puxou o gatilho. O som do disparo, no entanto, foi “plé” ao invés do esperado “bang”. E o pato, ao invés de cair estatelado, fez “quá” de susto e seguiu andando. No dedo esquerdo de meu avô, todo ensanguentado, alojara-se a bala. Sem querer, envolvera o cano da arma com os dedos da mão esquerda e acabara desferindo um tiro no próprio indicador. Entrou em casa apressado, sob os questionamentos de minha avó: “Cadê o pato?”. E respondeu: “Um deles está lá fora, o outro, aqui dentro”. Sem se abalar, pegou um facão, arrancou o projétil fora, passou alguma coisa no dedo (Merthiolate, Cobrina, Frixal?), tomou um gole de algo (Olina, Underberg?) e foi dormir “que amanhã estaria bom”. A mesma frase e o mesmo método eu sei que ele usou outra feita, quando tirava mel das caixas de abelhas e foi atacado pelos insetos, levando diversas ferroadas. “Vou dormir que amanhã estarei bom”, dizia.
Seguindo esse mantra, de alguma forma, completará 90 anos de vida no início da semana que vem. Não recomendo seguir à risca suas atitudes em casos como esses. Essa gente nascida há quase um século era fabricada em moldes menos frágeis e delicados do que os nossos atuais. Mas também vinham imbuídos de uma maneira menos complicada de se relacionar com a vida. Essa, sim, é a parte que deveríamos aprender a seguir com mais atenção.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de setembro de 2013)

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