segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Azar, a sorte está lançada

Eu tinha nove ou dez anos de idade, lá na minha longínqua Ijuí natal, em meados da mesozóica década de 1970, quando um tio piloto de avião me apresentou pela primeira vez alguns álbuns com as aventuras do personagem Asterix, o Gaulês. Fiquei fascinado, como não poderia deixar de ser, em se tratando de um garoto tímido, de óculos fundo-de-garrafa dependurado na ponta do nariz, afeito à leitura de livros e gibis desde que me conhecia por gente. Devorei aqueles exemplares e, mais tarde, adquiri toda a coleção, como não poderia deixar de ser, em se tratado de eu mesmo.
A partir do mergulho no universo em que transitavam aqueles personagens gauleses que resistiam à invasão romana em 50 a.C., eu me divertia sem perceber que, por tabela, aprendia muito sobre História do mundo antigo, embalado na genialidade das camadas de texto criadas pelo roteirista das histórias, o francês René Goscinny. Mas o que mais me fascinava eram as expressões em latim exclamadas pelos personagens romanos, que eu absorvia e adotava em meu cotidiano. A preferida entre todas era “alea jacta est”, ou seja, “a sorte está lançada”, proferida pelo imperador romano Júlio César em 49 a.C. Sempre que entrávamos em família no carro de meu pai a fim de empreender viagem para as praias ou para a fronteira, onde moravam meus avós maternos, lá vinha, do banco de trás, a frase do Marquinhos: “alea jacta est”, invocando com ela uma viagem sem percalços. Aparentemente, funcionava. Nas provas do colégio e ao final das redações (“composições”), na quarta série, tascava a frase, almejando boas notas. Parecia também funcionar.
Outra expressão que integrava meu repertório latino aos dez anos de idade era a clássica pergunta “quo vadis?”, significando “aonde vais?”. Certa tarde, perambulando pelas ruas de Ijuí, deparei com meu avô paterno, de pasta de trabalho em punho, vindo pela calçada na direção contrária. Assim que nos aproximamos, interceptei-o e lancei a pergunta: “quo vadis”? Surpreso, mas, como sempre, espirituoso, meu avô de pronto respondeu: “eu vadis ao Correio”. O episódio entrou para o folclore familiar, naturalmente.

Hoje em dia, ao deparar com os desestimulantes, aterradores, assombrosos e surreais fatos que povoam os noticiários a respeito da situação caótica do país em todos os setores, voltam a me assaltar as antigas locuções latinas, induzindo-me a inquirir, mentalmente: “quo vadis, Brasil?”. Não o faço, na prática, por temer que a resposta seja “eu vadis para o fundo do fundo do poço”. Se for assim, não haverá “alea jacta est” que nos salve...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 26 de fevereiro de 2018)

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