Nesses dias atuais pautados por
ódios exacerbados dando o tom às postagens nas redes sociais e ao transitar na
vida real, em que não se medem esforços para atacar e destruir a tudo e a todos,
vale lembrar um episódio modelar ocorrido no Rio de Janeiro há mais de um
século, e que foi registrado por um dos protagonistas na revista “Máscara”, produzida
em Porto Alegre, em sua edição número 1, de 1918. Quem relatava o feito, em
artigo naquela publicação, era o jurista, político e notável gaúcho João Carlos
Machado, evocando um encontro casual que tivera alguns anos antes, no Rio
(então capital federal do país), com o poeta gaúcho Marcelo Gama (1878 - 1915),
ali radicado.
O poeta ainda vivia (antes de ser
arremessado fatalmente do banco de um bonde sobre um viaduto no Rio, despencando
de uma altura de sete metros), quando Machado deu com ele em uma quebrada no
centro da metrópole. Gama convida o conterrâneo a segui-lo até uma mesa da tradicional
confeitaria “Americana”, para conversar. Ali, do interior de uma pasta repleta
de papéis, o poeta pinça um “libelo” que tencionava publicar na imprensa
carioca, direcionado contra determinado escritor que vinha sendo aclamado pela
imprensa e pela crítica, segundo ele, de forma injusta, pois não passaria de um
“incompetente arranjador de lugares comuns”, incensado pelos “basbaques”. A
crítica de Gama, segundo Machado, ao ouvi-la ser lida em primeira mão pelo
autor, era demolidora, “atacando a fundo os vícios literários da notabilidade
incipiente”.
“Que tal?”, perguntou o Gama ao
amigo, ao findar a leitura do artigo arrasador, ainda inédito. De pronto, Machado
respondeu: “Homem ao mar! Publicas isso num dia e, no outro, o homenzinho
chorará cento por cento da sua reputação literária”. Ao ouvir isso do parceiro,
“baixou a cabeça Marcelo Gama”; silenciou e passou a travar uma luta em seu
íntimo. “Aquele coração, infeliz, mas fundamentalmente bom, não sabia praticar
perversidades”, ponderou o interlocutor do poeta. Então, discretamente, Gama
rasgou em pequenos pedaços o papel que continha a ácida crítica tão habilmente
por ele arquitetada e jogou-os ao vento. Em seguida, sorvendo um gole de seu aperitivo,
murmurou, resignado: “Esse inconsciente que suba!”
Marcelo Gama conseguiu abrir mão
do ato de tentar destruir, ou, ao menos, chacoalhar uma reputação. Foi estoico.
Heroicamente, refreou os ímpetos agressivos que assomam de tempos em tempos ao
espírito de quem é humano. O Gama engoliu em seco seu fel e imortalizou
civilidade. Ah, que falta nos faz uma gama de Gamas assim, um século depois!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 1 de abril de 2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário