segunda-feira, 22 de abril de 2019

Verdades da boneca de pano


Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta ideia do escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar ideia de que está falando a verdade pura”. Essas filosofanças profundas e singelas não provêm da limitada capacidade deste mundano cronista, mas, sim, da genialidade de Monteiro Lobato, dando voz e vida a uma de suas mais brilhantes criações: Emília, a boneca de pano do Sítio do Picapau Amarelo.

O texto aqui reproduzido pertence à abertura do livro “Memórias da Emília”, em que a personagem protagoniza uma hilária e ao mesmo tempo reflexiva saga ao tentar narrar por escrito (com a ajuda do Visconde de Sabugosa, por ela empossado na função de seu secretário) os fatos que marcaram sua existência. “Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso.”, explica a boneca para uma estupefata Dona Benta. O livro surgiu no ano de 1936, integrando a saga de aventuras infanto-juvenis da Turma do Sítio, que vem encantando sucessivas gerações de leitores brasileiros. Lobato morreu em 1948 e, passadas sete décadas, sua obra cai agora em domínio público, permitindo reedições e adaptações de todas as sortes. O que fica, para sempre, é a magia e a sutil avaliação das nuances da alma humana, representadas pelos personagens e pelas tramas das obras, como as reflexões sobre o que é e o que não é a verdade, evocadas pela Emília no início desta croniqueta de segunda.
Em sintonia com o momento, o Instituto de Leitura Quindim, daqui de Caxias (situado junto ao Centro Cultural Moinho da Cascata, Rua Luiz Covolan, 2820), convida o público para visitar a mostra intitulada “Sra. Dona Emília de Trapo de Macela”, em que sete artistas plásticos da região revisitam a personagem a partir de seus talentos. Ilka Filippini, Sharizy Pezzi, Marina Prochászka, Marina Rombaldi, Matheus Montanari, Volnei Canônica e Rafael Dambros (que também responde pela curadoria) integram o time que mergulha na magia do Sítio do Picapau Amarelo para reinventar reinações artísticas ao agrado de crianças de zero a 99 anos. A mostra abriu na semana passada e segue até o dia 12 de maio. A visitação é gratuita. Uma experiência criada para ficar na memória e evocar as verdades mais íntimas de cada um, tanto das de seres de pano e macela quanto das de carne e osso. Chega lá!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 15 de abril de 2019)

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