segunda-feira, 3 de junho de 2019

O que Félix vai fazer?


“Ressurreição” é o título do primeiro romance escrito e publicado por Machado de Assis (1839 – 1908), em 1872, quando o ainda jovem autor de contos e crônicas em jornais aspirava ocupar um lugar de destaque no cenário literário brasileiro, o que acabou acontecendo com méritos mais adiante, não se sabe se superando ou se cumprindo as suas expectativas. Machado, como a madama está careca de saber, é nosso Shakespeare brasileiro e ombreia-se ao bardo inglês nos quesitos qualidade, criatividade, relevância da obra, originalidade e, por fim, mas mais importante: genialidade. Só não alcançou a universalidade obtida por Shakespeare pelo fato de ter nascido brasileiro e, por consequência, escrever em português, mas isso são outros quinhentos, como já diziam nossos avós, nos tempos em que quinhentos ainda valiam metáfora.
“Ressurreição” antecede os arroubos inigualáveis de genialidade literária que se apossariam de Machado nos anos seguintes e o levariam a produzir joias como “Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”. Ao lê-la, percebe-se nela claramente suas condições de obra de estreia e o tamanho da quebra estrutural narrativa que o autor protagonizaria com o amadurecimento de seu gênio, mas, ao mesmo tempo, é também possível detectar nas suas linhas e entrelinhas a presença já latente dos aspectos que distinguiriam e viriam a compor as características inimitáveis do escritor no futuro. A trama é simples: Félix, jovem médico prematuramente auto-aposentado em virtude de uma herança, vive uma vida tranquila pautada pelo mundanismo despreocupado, focado no cultivo de amizades, de presença em recepções sociais e de romances deliberadamente efêmeros e superficiais. Até que, súbito (e se não fosse súbito não haveria literatura), surge Lívia, bela e jovem viúva, irmã de um de seus amigos.
Lívia apaixona-se por Félix e passa a demonstrar o sentimento que se assenta em seu coração a partir de pequenas pistas sutis que são captadas pelas antenas ligadas de Félix. O dândi, no entanto, vê-se enredado em um dilema: não pode negar o florescer em si de uma paixão indomável pela moça. No entanto, hesita em se entregar inteiro ao consumo daquele amor, talvez por medo de balançar as estruturas do modo de vida que até então cultivava. Vale a pena fazê-lo ou não? A história acabará bem ou mal? Não sei, madama, ainda não concluí a leitura. Só sei que, assim como Félix e Lívia também o sabem, a vida é um livro aberto. Para sabermos o desfecho, precisamos vivenciá-la (a vida e o livro) até o final. Boas leituras.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de junho de 2019)

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