Argentino, meu amigo argentino
que mora em Caxias desde a época em que se circulava nos sábados à tarde pela
Avenida Júlio em São Pelegrino fazendo a “Caravana da Polenta”, é um exímio
adestrador de cachorros. Aprendeu o ofício quando estudava na Universidad de
Buenos Aires, levando a passear, pela Recoleta, “los perros de las madamas
porteñas” a troco de “unos valorosos pesos”, que lhe permitiam incrementar o
sustento e saborear “un asado de tira com chorizo” na parrilla dos finais de
semana. Argentino era um “perrero” de primeira, requisitado pelos donos e
adorado pela cachorrada buenosairense, de quem recebia lambidas embaladas em
gratidão canina.
Aqui em Caxias, adestra cachorros
como hobby e incremento do sustento, o que lhe permite fruir galetos ao primo
canto e sagus gelados nos finais de semana em cantinas típicas. Domingo desses
me convidou para almoçar em sua casa, pois queria me apresentar o novo
habitante do lar: Galardón, um fox terrier saltitante, que já na chegada ameaçava
lustrar meus tênis erguendo a patinha e mirando o jorro que acabou pegando em
cheio no vaso com o cactus do Atacama posicionado ao lado, pois que pra lhama
também não sirvo e sei ser ágil em momentos cruciais. “Te voy a mostrar como
Galardón es um perro inteligente”, acudiu Argentino, embalado no avental de chef
que usa sempre que se bota a brigar com “el maldito carvón brasileño” frente à
churrasqueira. “Te vás a ver como se finge de muerto”, disse, e gritou para
Galardón: “Muerto!”
O bicho enrijeceu de pronto, estalou
os olhos, cerrou os dentes, pôs a língua pra fora e tombou de lado sobre o
tapete da sala, derrubando o vaso com o cactus do Atacama. “Toca-lo”,
ordenou-me Argentino, esgrimindo o espeto com o salsichão. “Eu não!”, respondi.
“Toca-lo!”, insistiu. Encostei meu dedo na pele do bicho. Frio e rígido, como
um cactus do Atacama. “Tchê, ô, meu, esse teu cachorro morreu mesmo, véio”,
falei, pasmo. “Nada; mira”, disse ele, e gritou, estalando os dedos: “Galardón,
en pié!”. O animal pulou. Saiu do transe, girou sobre si mesmo, reviveu e veio
direto lamber meus tênis, erguendo de novo a patinha, repleto de ideias fixas
ressuscitadas. Argentino, satisfeito, voltou à churrasqueira, enquanto Galardón
pulava ensandecido ao seu redor, orgulhoso da performance. De minha parte,
estava inclinado a refletir sobre as relações consentidas de submissão e poder,
mas era domingo, a crônica de segunda já estava pronta e precisava limpar o
tênis. Me fiz de muerto e fui brincar com Galardón. Saber quando deixar por
isso mesmo também é uma arte.
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