segunda-feira, 22 de julho de 2019

A performance de Galardón


Argentino, meu amigo argentino que mora em Caxias desde a época em que se circulava nos sábados à tarde pela Avenida Júlio em São Pelegrino fazendo a “Caravana da Polenta”, é um exímio adestrador de cachorros. Aprendeu o ofício quando estudava na Universidad de Buenos Aires, levando a passear, pela Recoleta, “los perros de las madamas porteñas” a troco de “unos valorosos pesos”, que lhe permitiam incrementar o sustento e saborear “un asado de tira com chorizo” na parrilla dos finais de semana. Argentino era um “perrero” de primeira, requisitado pelos donos e adorado pela cachorrada buenosairense, de quem recebia lambidas embaladas em gratidão canina.
Aqui em Caxias, adestra cachorros como hobby e incremento do sustento, o que lhe permite fruir galetos ao primo canto e sagus gelados nos finais de semana em cantinas típicas. Domingo desses me convidou para almoçar em sua casa, pois queria me apresentar o novo habitante do lar: Galardón, um fox terrier saltitante, que já na chegada ameaçava lustrar meus tênis erguendo a patinha e mirando o jorro que acabou pegando em cheio no vaso com o cactus do Atacama posicionado ao lado, pois que pra lhama também não sirvo e sei ser ágil em momentos cruciais. “Te voy a mostrar como Galardón es um perro inteligente”, acudiu Argentino, embalado no avental de chef que usa sempre que se bota a brigar com “el maldito carvón brasileño” frente à churrasqueira. “Te vás a ver como se finge de muerto”, disse, e gritou para Galardón: “Muerto!”
O bicho enrijeceu de pronto, estalou os olhos, cerrou os dentes, pôs a língua pra fora e tombou de lado sobre o tapete da sala, derrubando o vaso com o cactus do Atacama. “Toca-lo”, ordenou-me Argentino, esgrimindo o espeto com o salsichão. “Eu não!”, respondi. “Toca-lo!”, insistiu. Encostei meu dedo na pele do bicho. Frio e rígido, como um cactus do Atacama. “Tchê, ô, meu, esse teu cachorro morreu mesmo, véio”, falei, pasmo. “Nada; mira”, disse ele, e gritou, estalando os dedos: “Galardón, en pié!”. O animal pulou. Saiu do transe, girou sobre si mesmo, reviveu e veio direto lamber meus tênis, erguendo de novo a patinha, repleto de ideias fixas ressuscitadas. Argentino, satisfeito, voltou à churrasqueira, enquanto Galardón pulava ensandecido ao seu redor, orgulhoso da performance. De minha parte, estava inclinado a refletir sobre as relações consentidas de submissão e poder, mas era domingo, a crônica de segunda já estava pronta e precisava limpar o tênis. Me fiz de muerto e fui brincar com Galardón. Saber quando deixar por isso mesmo também é uma arte.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 22 de julho de 2019) 

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