Ninguém nega que comer é uma
atividade vital para a existência humana. Envelopado em aspectos culturais e
hedonistas, o ato de alimentar-se extrapola a esfera do impulso vital
instintivo e alcança, entre as gentes, o status de prazer, de requinte, de
deleite, de satisfação dos sentidos. Mais do que cimentar o estômago com
alimentos, ir à mesa representa a ressignificação de um ritual em que a arte da
gastronomia age a serviço da comunhão com amigos, com familiares e, muitas
vezes, consigo mesmo. Assim, nos transformamos em gourmets, em chefs, em
sommeliers (profissionais ou amadores, de diploma ou de araque) e cultivamos
nossas visões pessoais a respeito do que significa “boa mesa”. Come-se, mas de
boca e olhos bem abertos.
Aqui em Caxias do Sul, ir à mesa
(de casa, do bar ou do restaurante) é uma atividade tão representativa de nossa
cultura e de nosso jeito caxiense de ser que chegamos ao ponto de fomentar
querelas insanáveis a respeito da melhor forma de preparar e/ou de servir
alguns dos pratos que mais apreciamos. Nós, caxienses, dispendemos generosos nacos
de tempo de nossas vidas para batermos bocas (às vezes cheias) quando o assunto
é, por exemplo, a temperatura ideal para servir o sagu, que a maioria dos
habitantes serranos (reza a tradição, porém, a tese ainda carece de estudo
científico) jura preferir quente ou morno, mas alguns hereges refestelam-se em
apreciar frio e/ou gelado. Nas lanchonetes, a questão gira em torno do xis, que
deve ser apresentado, para uns, aberto e, para outros, prensado, e os embates
não se dão à boca pequena. A pizza, não há quem não aprecie, porém,
dividimo-nos na hora de optar por borda recheada ou sem borda nenhuma. A sopa
de agnoline (que é de capeletti em certas távolas) chega ao debate nas versões
al dente ou inflada de tão cozida (quando cada unidade se assemelha a um chapéu
mexicano). O bauru rende bons bocados de discussão, pois que aqui é servido
aberto no prato, revoltando os puristas que só o concebem fechado no pão. Nem a
ortodoxa salada de radicci escapa da celeuma: deve vir com ou sem bacon? Já
temperada com vinagre ou sem nada, para que seja azeitada ao gosto do freguês? E
no tortéi, deve-se acrescentar canela no tempero do recheio ou não?
Impossível obter conciliação
unânime nessa saborosa seara, afinal, também nos dividimos entre papos e
grenás, entre pedestres e motoristas, entre friorentos e acalorados, entre
“nativos” e “os de fora”. Só uma coisa é pacífica: no inverno, café preto tem de
vir com um pingo de graspa, que é para não encarangar. Buon appetito!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 12 de agosto de 2019)
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