segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Sem consenso no cardápio


Ninguém nega que comer é uma atividade vital para a existência humana. Envelopado em aspectos culturais e hedonistas, o ato de alimentar-se extrapola a esfera do impulso vital instintivo e alcança, entre as gentes, o status de prazer, de requinte, de deleite, de satisfação dos sentidos. Mais do que cimentar o estômago com alimentos, ir à mesa representa a ressignificação de um ritual em que a arte da gastronomia age a serviço da comunhão com amigos, com familiares e, muitas vezes, consigo mesmo. Assim, nos transformamos em gourmets, em chefs, em sommeliers (profissionais ou amadores, de diploma ou de araque) e cultivamos nossas visões pessoais a respeito do que significa “boa mesa”. Come-se, mas de boca e olhos bem abertos.
Aqui em Caxias do Sul, ir à mesa (de casa, do bar ou do restaurante) é uma atividade tão representativa de nossa cultura e de nosso jeito caxiense de ser que chegamos ao ponto de fomentar querelas insanáveis a respeito da melhor forma de preparar e/ou de servir alguns dos pratos que mais apreciamos. Nós, caxienses, dispendemos generosos nacos de tempo de nossas vidas para batermos bocas (às vezes cheias) quando o assunto é, por exemplo, a temperatura ideal para servir o sagu, que a maioria dos habitantes serranos (reza a tradição, porém, a tese ainda carece de estudo científico) jura preferir quente ou morno, mas alguns hereges refestelam-se em apreciar frio e/ou gelado. Nas lanchonetes, a questão gira em torno do xis, que deve ser apresentado, para uns, aberto e, para outros, prensado, e os embates não se dão à boca pequena. A pizza, não há quem não aprecie, porém, dividimo-nos na hora de optar por borda recheada ou sem borda nenhuma. A sopa de agnoline (que é de capeletti em certas távolas) chega ao debate nas versões al dente ou inflada de tão cozida (quando cada unidade se assemelha a um chapéu mexicano). O bauru rende bons bocados de discussão, pois que aqui é servido aberto no prato, revoltando os puristas que só o concebem fechado no pão. Nem a ortodoxa salada de radicci escapa da celeuma: deve vir com ou sem bacon? Já temperada com vinagre ou sem nada, para que seja azeitada ao gosto do freguês? E no tortéi, deve-se acrescentar canela no tempero do recheio ou não?
Impossível obter conciliação unânime nessa saborosa seara, afinal, também nos dividimos entre papos e grenás, entre pedestres e motoristas, entre friorentos e acalorados, entre “nativos” e “os de fora”. Só uma coisa é pacífica: no inverno, café preto tem de vir com um pingo de graspa, que é para não encarangar. Buon appetito!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 12 de agosto de 2019)

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