sexta-feira, 15 de julho de 2011

Fora da bandeja

Dois copos, dois pratos e uma latinha de refrigerante para retirar na mesa do fundo, onde “...estou te dizendo, eu liguei várias vezes, mas sempre caía na caixa postal....”.
Um suco de laranja, um de abacaxi e uma água tônica com gelo e sem limão para a mesa oito, onde “...quatrocentos reais por cabeça, isso sem falar nos custos, que vamos tentar cobrir com a vinda dos patrocinadores que vocês...”.
Dois cafezinhos, um sem açúcar e outro com três gotas de adoçante, para a mesa da ponta da janela, onde “...não sei, amor, não sei, você é quem sabe, o que ficar melhor para você, você sabe que eu...”.
Uma colher de plástico e o cadeirote para a mesa central, onde “...óóóóóóóó’, nenê da vovó, uti-uti-uti-uti-uti, lindo, querido, olha ali o titio com tua cadeirinha, ó, amadinho...”.
A conta, quatro chicletes e os palitos de dentes na mesa 10, onde “...e é a última vez que eu falo, porque você sabe, vai ficar uma semana sem jogar Playstation de novo se você teimar em...”.
Mais uma cerveja e dois copos limpos e gelados na mesa colada ao ventilador, onde, como sempre, “...todos corruptos, sem exceção, só querem é se arrumar, e a gente fica aqui, que nem trouxas, trabalhando um terço do ano para pagar impostos enquanto aquele salafrário do...”.
Dois refrigerantes, um suco de abacaxi, três sucos de laranja, um suco de uva, uma caipirinha, uma cerveja e uma água mineral com gás sem gelo e com limão nas três mesas juntadas na ponta esquerda, onde “...chamando a Emília – troca aqui comigo, Nestor – hahahahahahahahaha – saudades de ti – deixou o carro onde? – lindo, lindo, comprou aqui? – nem imaginava – isso mesmo – faltando ainda a Cecília e o Marco – abraça aqui – meus parabéns, hein...”.
Ao final do dia, reorganiza as mesas e as cadeiras do restaurante enquanto, em sincronia, tenta organizar na memória os fiapos de diálogos que capturou das bocas dos fregueses ao longo da jornada, tentando detectar algum sentido no quebra-cabeças de frases que por instantes compartilha, sem imaginar que o que presencia, mesmo que fragmentariamente, é o tramar da teia das humanidades que diariamente o cercam.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de julho de 2011)

4 comentários:

Anônimo disse...

Eu vou indicar a leitura a umas amigas que trabalham na livraria/café que costumo frequentar e dizer: "olha que tri - bonita homenagem a vocês, atendentes, e a nós, ex-garçons."

Supimpa o texto, Marcos! Mas eu acho que a água para as mesas juntadas lá na esquerda era sem gás...

J.Cataclism

Página Virada disse...

Oi Marcos,

Grande texto! Bares, restaurantes, escolas, igrejas, todos eles são locais onde vemos claramente a teia da humanidade se desenvolvendo.
Seu texto me fez lembrar de uma música do Billy Joel, "Piano man", sobre um cara que toca em um bar e vivencia muitas das vidas dos frequentadores, e acaba ouvindo coisas parecidas com as que você escreveu.


Um abraço
Guilherme

marcos fernando kirst disse...

Que bom que apreciaste, Cataclism.
Nao sabia dessa passagem como garçom em tua trajetória. Aos poucos, vão surgindo as peças...
Abs
Marcos K

marcos fernando kirst disse...

Sim, Guilherme... sem falar nos fiapos de conversas que cruzam por nossos ouvidos a cada caminhada pelas ruas... aí o que eu lembro é do conto "O Homem da Multidão", do Poe....
Abs
Marcos K