sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Quem ousa ousar?

“Temos, todos que vivemos, uma vida que é vivida e uma vida que é pensada. E a única vida que temos é essa que é dividida entre a verdadeira e a errada”. Os versos são do poeta lusitano Fernando Pessoa, e convidam a refletir sobre temas comuns a quem cultiva o hábito de ensimesmar o pensamento: a realidade da existência, os sonhos não realizados, os rumos outros que poderiam ter sido tomados, o que somos, o que deixamos de ser, o que gostaríamos de ser, o equilíbrio difícil entre vida real e vida sonhada e por aí afora.
É cada vez mais comum hoje em dia encontrarmos pessoas – ou tomarmos conhecimento por meio de relatos – que subitamente decidem mudar os rumos de suas vidas. De repente, sem maiores preâmbulos, largam o emprego onde vinham construindo carreiras sólidas e promissoras, ou mudam de cidade, ou decidem fazer um curso, ou desfazem o casamento, enfim, promovem mudanças profundas nos próprios caminhos de suas vidas, em busca da realização pessoal. Tem sido corriqueiro saber de gente que afirma ter percebido que a vida é uma só, não dá para ficar esperando que milagres chovam do céu, e optam, então, por fazer com que os milagres aconteçam dando um empurrão nas tramas do Destino, que às vezes se apresenta meio lento e desatento, convenhamos. Menos dinheiro e mais paz de espírito, menos correria e mais tempo para encher pulmões e almas de vida. Não são poucos os que têm ousado dar o passo no sentido de tornar mais real a vida pensada, conforme aponta o poeta.
Porém – sem um porém não teríamos crônica, pois não? -, há um aspecto que ainda passa batido, mesmo para essas almas que se colocam a materializar sonhos em vida. Trata-se da tendência que ainda temos de manter subentendidos sentimentos que só vamos ter coragem de expressar depois que as pessoas que nos são caras nos deixam para sempre. Escrevemos mensagens tocantes, bonitas e emocionantes em obituários, declarando o quanto amávamos nossos entes queridos e o quanto eles eram importantes em nossas vidas, como uma espécie de catarse pessoal e acerto de contas com a memória do falecido. No entanto, o falecido segue falecido, e não lerá a homenagem, não escutará as belas palavras referentes à sua memória cochichadas entre os que ficaram.
O que nos impede de dizermos claramente a essas pessoas o que sentimos em relação a elas enquanto convivem conosco? Imaginamos que basta trocarmos presentes nas datas impostas pelo calendário comercial para subentender que gostamos. Mas não basta. Temos de ter a coragem de dizê-lo – ou de escrevê-lo – em vida. A mesma coragem que às vezes temos ao chutarmos o balde e reorientarmos os prumos de nossas caminhadas. Porque depois, é tarde, e as mensagens caem em solo seco. Julgamos que acertamos as contas emocionais com quem partiu, mas na verdade ficamos é devendo. Para nós mesmos.
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 5 de agosto de 2011)

3 comentários:

Juliana disse...

Oi, Marcos!
Sabes que percebi a importância de dizer o que realmente importa depois de morar "longe"?
Melhor pra mim, pois espero poder dizer tudo antes que seja tarde demais. Abraço!

SandmanIsHere disse...

O tanto que deixamos de externalizar, de comentar, de deixar evidente o que pensamos, o que sentimos, talvez seja maior do pouco que conseguimos dizer (e muitas vezes dizemos apenas por dizer, sem que exista nisso uma real e verídica emoção em conformidade com o que se passa por dentro, nos recantos obscuros de uma alma) e comunicar àqueles que permanecem à nossa volta por toda a vida. Muitas vezes, não se fala sinceramente por pensar que “ainda há tempo”, “sempre é cedo”, “amanhã eu falo”, “quem sabe numa data especial”. E então, fica o pensar como desculpa para o não dizer e isso não é bem hipocrisia, mas sim uma medida de propor “mais tempo ao tempo”, só que este, felizmente ou infelizmente, passa e aí, de repente, não há mais tempo, o tempo já teve seu tempo e foi-se, deixando apenas aquela elevada vontade de fazê-lo retornar, mesmo sabendo que não irá. Quiçá, é como Pessoa, no mesmo poema citado no início da crônica, escreve em seus últimos versos: “... vivemos de maneira que a vida que a gente tem é que tem que pensar”. Mas não custaria muito, ainda que o pensar continue, fazer a prática abrir asas e proferir o que sua teoria pensativa tanto resmunga para si mesma.

Anônimo disse...

Escute-se "Semana que vem", da Pity.

J.Cataclism