Se a primeira impressão é a que fica, o mesmo se dá com as sensações. O contato primordial com algo que nos confere prazer vem carregado de tamanha força psíquica que nos fica impressa a sensação na alma de tal maneira que, no transcorrer de nossas existências, passamos em vão tentando resgatar com a repetição do ato, sempre sem sucesso.
O sabor do chocolate, por exemplo. Houve alguma vez, lá na longínqua infância, em que nossas papilas gustativas tiveram pela primeiríssima vez a alegria de se verem confrontadas com o gosto e o sabor apaixonante de uma barra de chocolate, amorosamente ofertada por algum de nossos parentes. Lambuzamo-nos as mãos e a boca em uma sessão de alegria infantil frente ao maravilhamento que aquela sensação primordial provocava em todos os nossos sentidos, descobrindo um deleite até então jamais vivenciado. Dali para adiante, sempre que rasgamos o invólucro de algum chocolate qualquer, inconscientemente estamos tentando repetir em nossos sentidos a mesma explosão de prazer que ocorreu naquela vez primeira, mas esse efeito jamais será repetido em igual intensidade. Nossa busca, no entanto, é incessante, e passamos a vida a comer chocolates, degustar vinhos, fazer amor, escutar (e reescutar milhares de vezes) a mesma música, praticar os mesmos atos.
O escritor francês Philippe Delerm publicou um livrinho intitulado “O primeiro gole da cerveja” (Editora Rocco), em que enfileira algumas dezenas de crônicas versando sobre a questão dos singelos prazeres que tornam nossas vidas mais deliciosas. E justamente o texto que dá título ao livro é o que se refere à sensação primeira de um prazer, no caso, o ato de saborear um copo de cerveja. Segundo Delerm, nenhum dos goles seguintes se equipara ao prazer do primeiro, fazendo eco à teoria que estou aqui defendendo.
Algumas vezes, no entanto, é possível acontecer um raro fenômeno de epifania, quando estamos a repetir pela milionésima vez um prazer já conhecido e, sem que esperemos, somos possuídos pela sensação explosiva e arrebatadora do novo. É a renovação do prazer, algo que ocorre uma vez em duzentos trilhões, conforme pesquisas recentes que eu gostaria que de fato existissem. Deu-se comigo anos atrás quando experimentei pela primeira vez um vinho chileno produzido com a uva carmenére, que me renovou a sensação de degustar algo realmente novo em termos de varietais viníferas. E dá-se comigo, na razão de uma vez a cada dez anos, no quesito da leitura.
Lá de vez em quando, em meio a tantos livros (e a tantos livros bons, importante ressaltar), ocorre de me cair em mãos a leitura de um texto que renova meu prazer primeiro de estar tendo o contato com um tecelão da genialidade da escrita. Que sensação deliciosa! Deu-se comigo cerca de dez anos atrás, quando li meu primeiro Ítalo Calvino (“As Cidades Invisíveis”), o que me obrigou a adquirir e ler de um fôlego só toda a sua obra. E deu-se agora, neste 2011, ao ler os dois únicos livros escritos pelo mexicano Juan Rulfo (1917-1986), “Pedro Páramo” (romance de 1955) e “Chão em Chamas” (contos, de 1953). Estou extasiado. Amortecido pela inundação do prazer primeiro de uma sedutora leitura, como se nunca tivesse lido algo tão bom antes.
Bom mesmo é ter a certeza de que, prosseguindo nesse ritual de leituras incessantes, haverei de ainda ser brindado com a repetição da unicidade deste prazer ainda várias vezes ao longo da vida. É a recompensa pela dedicação à leitura, que sempre está à espreita dos leitores por vocação.
(Texto publicado na seção "Planeta Livro" da revista Acontece Sul, em setembro de 2011)
Um comentário:
Aí é que me refiro! Em parte, me compadeço deste teu re-prazer na leitura. Deu-se comigo há uns seis anos atrás, ao ler "Um General na Biblioteca" (Italo Calvino), que acabou me arrastando para (quase) toda sua obra (por sinal, o Germano "Da Velha" já avisou que vem novidade dele para a Feira de Caxias...). Repetiu-se o prazer ao ler, quem diria, os até então por mim ignorados infanto-juvenis do Flávio L. Ferrarini e, alguns anos após, Harry Potter.
Sem contar estes colunistas ou bloguistas em cujos textos o cara acaba esbarrando por aí.
Ê, vida...
J.Cataclism
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