Não quer dizer muita coisa se o céu amanhece azul, despovoado de nuvens, especialmente depois de vários dias chuvosos que nos obrigaram a preferir ficar em casa a ter de esgueirar-se pelas quebradas da cidade em cumprimento de nossos incessantes deveres de existir. Não quer dizer se a temperatura está amena, convidando as camisas de manga curta dos rapazes e as saias das moças a se espreguiçarem e saltarem dos roupeiros para acompanhar nossos corpos a desfilar pelos shopping centers da região. Não quer dizer se é início de primavera e inesperadas pétalas de rosa pousam em nosso jardim, trazidas de longe por um rápido pé de vento morno que, de passagem, despenteia a legião de vizinhos que se encaminha para a parada de ônibus ali da esquina, rumo a mais um capítulo de suas vidas.
Nada disso quer dizer coisa alguma se, justamente naquele dia, sua alma acorda chovendo para dentro. Às vezes, não tem explicação, não há motivo racional e identificável nenhum que justifique esse estado de espírito que te deixa amarrotado nas ideias e lento de movimentos. Às vezes, é simplesmente isso mesmo: lá fora é primavera e você se faz inverno. Algo desregulou o ciclo das estações de seu estado de espírito e coloca você em descompasso com a atmosfera que o circunda, e nem adianta ficar buscando motivos. O canto feliz de um pássaro equilibrado no fio do poste de luz ali fora desvia a sua atenção de si por alguns segundos, mas nem isso é capaz de içá-lo para a superfície do poço em que o ato de ser e estar se transformou repentinamente.
Quando isso ocorre em um final de semana ou feriado, uma boa maneira de lidar com a coisa é aproveitar o excesso de pena de si mesmo para tentar transformar a sensação em inspiração para a produção de um poema sensível. É claro que, via de regra, você no máximo vai conseguir deitar ao papel um poema meloso, repleto de lugares-comuns e candidato a aterrissar em seguida no cesto do lixo (isso se você for uma pessoa dotada de bom senso e de um grau mínimo de autocrítica). Mas quando o fenômeno se dá em dia normal de trabalho, em que é preciso arregimentar forças psíquicas a partir de reservas emocionais que nem mesmo você imaginava possuir, aí, meu amigo, a coisa aperta mesmo, e qualquer movimento causa uma dor inexplicável que você sente não se sabe exatamente onde, mas percebe que ela está ali, incomodando, e não há aspirina que a extirpe.
O feitiço, porém, nem sempre é tão poderoso, e basta uma gentileza inesperada, um telefonema amigo, um sorriso brilhante acompanhado de um “bom-dia” pronunciado com vontade, para que a nuvem se desfaça e retomemos nas mãos a condução de mais um fundamental dia de nossas vidas, como o são todos aqueles que nos são dados viver. Nunca sabemos o poder curativo alheio que existe latente em pequenos gestos que muitas vezes esquecemos de exercitar. Sim, senhores, essa é uma crônica de autoajuda. Tenho o direito adquirido de, uma vez na vida, praticar uma delas. Aliviou meu início de dia.
(Crônica publicada no jornal Informante em 14 de outubro de 2011)
2 comentários:
Quantas verdades nessas linhas!!
Concordo plenamente e confesso, meio envergonhada, até, que pensava que tal estado de espírito não afligia os homens, sempre tão práticos e certeiros. Abração!
Uma crônica altamente sensível, Marcos! Ah se todo e qualquer texto ou livro de autoajuda tivesse tal graça e peculiaridade de tua presente crônica.
De fato “quando a alma acorda chovendo para dentro” tudo o que se passa por fora, nas externalidades fascinantes do cotidiano, ganha um sentido de “não querer dizer muita coisa”, já que o ser fica atulhado em melancolias diversas e, muitas vezes, nem se sabe ao certo o motivo de tanta nuvem cinza encobrindo os recônditos da existência, como tão sensivelmente tu assinalas: “Algo desregulou o ciclo das estações de seu estado de espírito e coloca você em descompasso com a atmosfera que o circunda, e nem adianta ficar buscando motivos”.
Só que assim como tais momentos de obscuridades internas se apresentam e parecem permanecer por tempo indefinido, os outros, os opostos, também cobram o seu espaço exatamente em situações e trocas - por alguns vistas e consideradas como banais e dispensáveis - simples e, por isso, belas, como “(...) uma gentileza inesperada, um telefonema amigo, um sorriso brilhante acompanhado de um “bom-dia” pronunciado com vontade, para que a nuvem se desfaça e retomemos nas mãos a condução de mais um fundamental dia de nossas vidas, como o são todos aqueles que nos são dados viver”.
Eu fiquei tocado por essa crônica porque... muitas vezes, quando a nuvem obscura me toma, fico displicente e até negligencio o “fundamental dia de nossas vidas, como o são todos aqueles que nos são dados a viver”. Da próxima vez que eu for acossado por melancolias e taciturnidades desvairadas e sem motivo, arregalarei os olhos e direi ao meu espírito soturno: “Algo desregulou o ciclo das estações de seu estado...” porém, não esqueça “de retomar nas mãos a condução de mais um fundamental dia...”.
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