terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Os sabores da Festa

(Saboreando a gastronomia típica da Serra Gaúcha. FOTO: DANIELA XÚ/PIONEIRO)

Eu não sou descendente de italianos e nem nasci na colônia. Sou um guri da cidade, proveniente de terras quase missioneiras, tetraneto de imigrantes alemães. Uma rápida passada de olhos pelo formato de minhas mãos logo denuncia que jamais empunhei o cabo de uma enxada e a planta de meus pés se esfola ao contato com o mais simples pedregulho ou com a rosetinha mais mixuruca. Picada de mosquito cria ferida de guerra em minha pele e me escondo do sol como um vampiro recém-nascido.

Com todas essas características a atulhar a minha bagagem genética e cultural, eu tinha tudo para me sentir um peixe fora da pesqueira quando aportei por essas terras caxienses, 20 anos atrás, atraído, como tantos outros antes de mim ao longo de toda a história dessa região, por alvissareiras perspectivas de trabalho e de vida que por aqui se apresentavam (vai ver eu também sonhava com a “cocagna”). No entanto, finquei raízes e acabei me aquerenciando de tal maneira por aqui que, hoje, me sinto mais caxiense do que qualquer outra coisa, plenamente integrado aos costumes e ritos da Serra Gaúcha, atuante na comunidade que me acolhe e orgulhoso de fazer parte dela.

Entre diversas outras razões, tenho certeza de que o aspecto gastronômico característico de Caxias do Sul e de toda a região de colonização italiana exerceu papel crucial para o meu rápido e profundo processo de inserção no cotidiano dessa cidade, tão bem representado periodicamente pela ampla programação cultural decorrente das edições da Festa da Uva. Trocando em miúdos, fui capturado não só, mas também, pelo estômago. Basta ver que o Marcos de 26 anos e 61 quilos que veio para cá ficou duas décadas e 16 mil gramas distante deste ser que hoje perambula, faceiro e mais rechonchudo, pelos restaurantes e cantinas que oferecem o saboroso, tentador, farto e inesgotável cardápio típico italiano, que tanto aprendi a apreciar.

Foi por aqui que conheci e passei a saborear iguarias como o queijo à milanesa, o radicci cotti, a carne lessa (olhava aquilo com o canto do olho e a boca retorcida, e hoje puxo o prato todo para o meu lado), a sopa de agnolini (e tudo bem que chegue à mesa batizada de capeletti, sorvo do mesmo jeito, com barulho e tudo), o grostoli (uma tia de minha esposa, em Nova Bassano, inclui gotas de cachaça na receita, e evito me empanturrar de sobremesa antes de dirigir), o café com graspa, a fortaia (prima do similar alemão eierschmier, ou “schmier de ovos”, que meus parentes faziam em Ijuí e em São Borja, na minha infância), o piem e tantas outras delícias, e vou parando a lista porque já estou salivando.

Isso sem falar no vinho, claro. Foi vivendo aqui que meu paladar evoluiu dos primitivos “vinhos de formação” de minha adolescência como Katz Wein, Liebfraumilch e os primeiros cabernet franc, para a apreciação dos excelentes varietais e espumantes produzidos na região. Colaborou para tanto a participação em cursos de degustação promovidos pelas vinícolas, o que faz com que hoje o ato de saborear um bom “biccierotto de vin” se transforme em um rito de prazer e respeito pelo fruto do esforço de tanta gente, por tantas gerações.

A Festa da Uva que nós, caxienses, protagonizamos a cada dois anos, mais do que apresentar o resultado da pujança e das tradições de um povo, se configura em um momento em que celebramos também o simbolismo da prosperidade que se expressa em uma mesa farta, aspecto cultural cultivado por onde quer que se pare para fazer uma refeição por essas plagas. É ao redor de uma boa mesa que a alegria de viver e nossas melhores características afloram. Quem comete a agradável ousadia de apreciar, durante a Festa, o cardápio típico da colônia servido no Salão Paroquial, sabe bem do que estou falando. Salute e buon appetito a tutti quanti!

(Publicado no jornal Pioneiro na seção especial intitulada "O Cronista na Festa", em 28 de fevereiro de 2012)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Ser e estar

Ando descobrindo em mim certas inabilidades pessoais que até então nem imaginava possuir. A cada novo evento a que compareço, certifico-me de que sou uma criatura completamente desprovida de senso de posicionamento espacial social, habilidade fundamental para transitar com desenvoltura em recepções e solenidades que exijam um traquejo que alguns desempenham com naturalidade enquanto outros, como eu, põem-se a derrubar candelabros. É como se eu fosse uma peça de xadrez que ficasse caindo para fora da própria casa e invadindo o quadrado do bispo ou esbarrando na rainha.
Noite dessas fui a um coquetel regado a espumantes em uma galeria onde obras artísticas disputavam espaço e atenções com o desfile de cobiçadas bandejas atopetadas de canapés coloridos. Naturalmente deslocado como sou, colei-me a um canto e pus-me a sondar o ambiente, que lotava com o passar dos minutos e com o secar dos cálices. Não demorou para eu notar que, ali onde me plantara, estava a obstruir a vista de uma das telas expostas, alvo da curiosidade dos presentes que contorciam pescoços em torno de minha silhueta, tentando apreciar a obra que eu ofuscava.
Dei dois passos para o lado para terminar com o incômodo e, em poucos minutos, passei a ser alvo de cotoveladas e bolsadas desferidas por senhoras e raparigas que buscavam acessar a mesinha dos docinhos frente aos quais agora eu me interpunha. Novamente recuei e me pus insipidamente no espaço em branco entre duas telas, imaginando fazer-me, enfim, inócuo, quando percebi estar sendo atentamente observado por entre os óculos de uma senhorinha fincada no meio do salão. Via ela em mim uma escultura (claro que de gosto duvidoso) a ser também analisada entre as obras ali dispostas.
Atravessei o salão a fim de encontrar espaço vital, mas atrapalhei o acesso aos banheiros. Arrastei-me para o lado e dificultei a chegada dos atrasados a partir da escada. Arremeti de volta ao salão e estacionei frente à mesa central onde todos me esbarravam na sanha por capturar as empadas de salmão. A harmonia espacial do ambiente só se recompôs quando providenciei a retirada de minha pessoa dali. Tenho inaptidão para conjugar os verbos ser e estar ao mesmo tempo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de fevereiro de 2012)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A nova face dos heróis

(Vem cá, a identidade dessa galera de colant colorida não deveria ser secreta???)


Passei boa parte de minha infância adquirindo e lendo gibis de super-heróis. Homem-Aranha, Os Vingadores e X-Men figuravam entre minha galeria de preferidos, e eu descarregava toda a minha mesada na aquisição das revistinhas para acompanhar as sagas. Os enredos seguiam a estrutura de novelas, especialmente nos aspectos relativos à vida dos personagens em suas identidades secretas, com seus amores, problemas, profissões (o fracote e quatro-olhos Peter Parker, fotógrafo do jornal Clarim Diário, era meu predileto).
Isso era nos anos 70, e o cinema ainda não dispunha dos recursos tecnológicos que agora a fantástica indústria dos efeitos especiais disponibiliza, permitindo, enfim, levar às telas com impressionante realismo tudo aquilo que as imaginações desvairadas de autores como Stan Lee, Bob Kane e outros concebiam para seus heróis impressos em papel. Cresci, mudei meus interesses literários e pouco hoje me seduzem as fantásticas versões cinematográficas de meus antigos heróis de infância, apesar de admitir ficar embasbacado com os efeitos especiais.
Uma coisa, no entanto, me incomoda nessa fase atual da transmigração do universo dos heróis superpoderosos trajando roupas colantes para as telas de cinema. É o descaso para com as máscaras dos personagens. Vejo os cartazes promocionais dos filmes e estão lá Homem-Aranha, Capitão América, Homem-de-Ferro, trajados com seus uniformes tradicionais, porém, sem as máscaras que por décadas os caracterizaram, expondo as faces dos atores que os interpretam. Por que isso?
Primeiro, porque certamente os astros hollywoodianos exigem tópicos contratuais que garantam capitalizar para suas imagens a fama obtida com o sucesso dos filmes. Segundo, porque me parece que algo mudou no conceito moderno de combate ao crime. Décadas atrás, os super-heróis, empenhados em combater o mal, faziam-no por puro diletantismo, preservando para si próprios suas identidades secretas. Nos dias de hoje, fazer o bem e combater o mal é tão raro que algumas pessoas que se dedicam a isso fazem questão de serem reconhecidas por tal, e exigem os louros para abrilhantar seus currículos. Fazer o bem, agora, virou marketing. A começar pelos super-heróis.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de fevereiro de 2012)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Boas propostas de leitura para 2012

O Planeta Livro - corpo celeste de localização indefinida, habitado por todos aqueles que vivem e respiram de alguma maneira a literatura – celebra neste ano de 2012 os aniversários de nascimento de duas grandes personalidades cujas obras auxiliaram a amplificar os caminhos e as possibilidades existentes nessa forma de expressão artística. Em fevereiro, boa parte do mundo ocidental estará relembrando os 200 anos de nascimento do escritor inglês Charles Dickens (7/2/1812 – 9/6/1870), um dos mais populares romancistas já surgidos em língua inglesa. Em agosto, os brasileiros comemorarão o primeiro centenário de nascimento de Jorge Amado (10/9/1912 – 6/9/2001), uma das maiores expressões de nossa literatura nacional, traduzido para diversas línguas.
Apesar das diferentes tradições literárias em que cada um deles se insere e da distância de um século que separa o nascimento de um e outro, ambos trazem em comum em suas obras a característica de aprofundarem mergulhos na alma da humanidade que os cercava em seus respectivos tempos e contextos. Ler Jorge Amado ou Charles Dickens é ser conduzido para dentro dos meandros da psique humana, passeio saboroso que nos auxilia a melhor compreendermos nós mesmos e as gentes que nos cercam. O catedrático norte-americano Harold Bloom considera Dickens um dos grandes gênios inventores de personagens literários de todos os tempos, ao lado de William Shakespeare e de Geoffrey Chaucer. Caso conhecesse melhor a literatura latino-americana, provavelmente reservaria um lugar de honra nessa categoria também a Jorge Amado.
A lista de clássicos produzidos por ambos os autores é extensa e a citação de alguns títulos sempre derivará das preferências pessoais de quem no momento as produz, incorrendo na injustiça inevitável de deixar de lado aqueles também ótimos livros que, por questão de espaço, não foram elencados. Sob a assinatura do autor inglês, obrigo-me a citar “Grandes Esperanças” (já classificado por alguns críticos como “um romance em que há de tudo”), “As Aventuras do Sr. Pickwick”, “Oliver Twist”, “David Copperfield”, “Casa Soturna” e “Um Conto de Duas Cidades”. Entre seus contos, destaco seu famoso “Um Conto de Natal”, cujo avarento e ranzinza personagem Ebenezer Scrooge inspiraria, mais tarde, Walt Disney a criar seu Tio Patinhas.
De Jorge Amado, a lista também é extensa, mas só para refrescar a memória podemos elencar “Gabriela, Cravo e Canela”, “Tieta do Agreste”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, “Tenda dos Milagres”, “Teresa Batista Cansada de Guerra”, “Tocaia Grande”, “Mar Morto”, “Capitães da Areia” e a genial e pouco lembrada novela “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”. Entre outros, naturalmente.
Centenários e bicentenários, como qualquer data comemorativa de nascimento ou morte de grandes artistas, além da justa homenagem, possuem o fundamental mérito de lançarem luz novamente sobre as personalidades e – principalmente – as obras legadas por esses criadores à posteridade. Nada melhor então do que aproveitar 2012 para conhecer ou mesmo revisitar os escritos de Charles Dickens e Jorge Amado. Ter seus livros em mãos e lê-los é, seguramente, a melhor forma como eles gostariam de ser homenageados e lembrados.
(Texto publicado na seção "Planeta Livro" da revista Acontece Sul, edição de fevereiro de 2012)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Teorias conspiratórias

Alguns leitores me escrevem afirmando serem aficionados pelas mensagens contidas nas entrelinhas das crônicas que aqui cometo neste espaço. Afirmam encontrar verdadeiras lições de vida e mesmo reflexões profundas no meio de textos em que aparentemente apenas discorro sobre a sensação desagradável de sentir cócegas no nariz quando lavo a louça ou quando falo sobre o prazer que tenho em encontrar conhecidos cruzando sobre uma faixa de segurança. Juram esses leitores que, nessas minhas crônicas, há muito mais entre uma linha e outra do que pensa nossa vã filosofia.

Apreciam mais eles, portanto, tudo aquilo que eu não escrevo e que julgam estar ali, visível somente para a leitura atenta praticada pelos iniciados, do que aquilo que efetivamente digito. Gostam mais do ghost writter que eu sou de mim mesmo, do que do eu-próprio que redige o que acaba sendo publicado aqui. Dia desses produzi uma aparentemente inocente crônica em que discorria bobamente sobre sacos de lixo esquecidos no porta-malas do meu carro e recebi e-mails de leitores me parabenizando pelo sutil recado que subliminarmente eu teria passado contra a extinção do mico-leão-dourado. Eu não sabia que existiam micos-leões-dourados, tampouco que estavam em extinção. Mas o leitor enxergou exatamente isso nas entrelinhas. Que medo começam a me dar essas entrelinhas que andam se enfiando entre minhas linhas sem me solicitar a devida autorização...

Só espero que meus leitores não cheguem ao extremo da paranóia que atingiu um amigo meu, chamado Argentino, que certa vez ficou impressionadíssimo com aquelas teorias conspiratórias que pregam haver mensagens diabólicas em certas músicas, se escutadas de trás para diante. Convenceu-se Argentino de que o mesmo ocorria com os livros de Paulo Coelho, e botou-se a ler de trás para frente “O Alquimista” em busca de mensagens demoníacas, a fim de desmascarar as verdadeiras intenções daquele autor. Por favor, leitores, evitem ler minhas crônicas de trás para diante. Não lhes quero provocar pesadelos além dos já advindos da leitura normal dessas mal-digitadas linhas.

(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de fevereiro de 2012)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Civilizai-vos uns aos outros

Vivemos numa sociedade que se mostra cada vez mais incivilizada no aspecto da capacidade dos seres humanos de se relacionarem uns com os outros respeitando regras básicas de convivência. “Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a si próprio” é um preceito tão antigo quanto desdenhado. As leis da boa convivência vão sendo diariamente varridas para debaixo do tapete sob os olhos estupefatos de quem ainda conta com atos de civilidade no trânsito, na escola, nas ruas, nos restaurantes, nos condomínios, no ambiente de trabalho, nas relações profissionais e pessoais. Viver próximo aos próximos está distanciando os semelhantes.

Os mais otimistas veem no incremento da educação o estandarte que deve ser levantado para confrontar o problema e encaminhar a humanidade para a construção de uma sociedade menos acotoveladora e mais harmoniosa. Enquanto investimento a longo prazo, concordo; porém, acho vital o uso de outro remédio que obtenha resultados imediatos, para evitar que a barbárie tome conta de tudo antes que os efeitos futuros da educação sejam colocados em prática.

O artefato para amenizar um pouco, e já, a selvageria da vida em sociedade, a meu ver, reside no incremento e na disseminação do uso desbragado da gentileza. Defendo a gentileza como elemento civilizador. Expressão de fácil compreensão, se aplicada no dia-a-dia, a gentileza produz efeitos instantâneos e é capaz de transformar o cenário da convivência urbana num piscar de olhos. Imagine o uso da gentileza nas situações do trânsito, no sair e entrar de portas giratórias e elevadores, nas filas dos buffets, no trato de assuntos conflitantes, no comportamento cotidiano que passa a levar em consideração a existência das demais pessoas que nos cercam. Deixar de ver o outro como um inimigo mortal que deseja capturar nosso pedaço de osso é um exercício que vale a pena ser praticado.

Sorrir um pouco mais; dar bom-dia/boa-tarde/boa-noite; empregar as palavrinhas mágicas “obrigado”, “por favor”, “desculpe”, “com licença”; saber reconhecer quando somos alvo de uma gentileza e saber agradecê-la. E retribuir, não necessariamente para a mesma pessoa, mas para outro desconhecido que não a espera de nós. Acredite: pouparemos vidas sendo mais gentis. Ajudaremos a aplacar o inferno, asseguro. Claro que isso não significa sermos tolerantes e/ou coniventes com a malandragem alheia, com os abusados, com os mal-educados, com os espertinhos que querem levar vantagem. Mas precisamos abandonar o pressuposto de que a sociedade é composta por seres que nos odeiam e aos quais devemos direcionar ódio. Porque, do jeito como anda a coisa, está, sim, ficando odioso conviver.

(Crônica publicada no jornal Pioneiro em junho de 2010)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Na ponta do nariz

Não sei se isso acontece também com você, caro leitor, mas comigo é batata: sempre que estou empenhado na doméstica tarefa de lavar a louça, acomete-me uma incômoda e irritante coceira na ponta do nariz. Com todas as mãos envolvidas na tarefa, molhadas e ensaboadas com detergente, é impossível proceder ao ato automático de levar a ponta dos dedos ao contato com a ponta do nariz para eliminar a sensação de coceira que, ao andar do lavar de xícaras e colheres, só se intensifica.
O que fazer nesses casos?
Normalmente, o primeiro impulso é contorcer o pescoço fazendo a cabeça girar cerca de 45 graus e elevar um pouco um dos ombros a fim de tocar com parte do antebraço a ponta coçante do nariz, esfregando um contra o outro em movimentos frenéticos deflagrados pela ânsia de livrar-se daquela ânsia. É uma operação complicada e de efeitos normalmente desastrosos para quem não possui a destreza física de um contorcionista de circo, como eu, que a muito custo hoje em dia dobro os joelhos para resgatar do chão a fatia de pão que sempre cai com o lado da manteiga para baixo. Sem falar que não funciona. Coceira na ponta do nariz só se esvai com o toque certeiro da ponta dos dedos e ponto final. Não há ombro, cotovelo, palma de mão, joelho ou umbigo que exorcize a angustiante sensação.
É como se de repente, ao começar a esfregar com o bombril aquela panela em cujo fundo o arroz queimado do meio-dia grudou-se todo, uma etérea teiazinha de aranha flanasse no ar e fosse pousar tal qual um lençol fantasmagórico sobre a ponta do seu nariz, provocando a comichão que lhe envesga os olhos e lhe vai gerando uma sensação indescritível de impotência contra o incontrolável, a ponto de dar vontade de sair correndo. Uma vez saí correndo. Nem é bom lembrar aqui o que aconteceu e deixemos assim.
Já tentei usar isso como argumento para livrar-me da incumbência de lavar a louça, mas o olhar 37 que me lança minha esposa sempre que avento a possibilidade me provoca calafrios em todas as demais partes do corpo. Ainda prefiro a coceirinha, que se restringe à ponta do nariz.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de fevereiro de 2012)