sexta-feira, 19 de julho de 2013

Quando parte um amigo


Era meu grande amigo e professava essa amizade comigo cultivando um silêncio profundo que ressoava nos recantos da casa ocupados por sua presença constante. Havíamos nos entendido desde o início, sete anos atrás, quando pela primeira vez cruzou a soleira da porta e detectou que em nossa casa haveria para ele um lar, no qual compartilharia aconchego, atenção, carinho. Cedo revelou-se mestre na arte de retribuir na décima potência o amor que recebia, pautando sua relação conosco na prioridade ao afeto.
Dizem alguns doutos que os da espécie dele são desprovidos de razão, movidos apenas pela irracionalidade do suprimento de seus instintos básicos. Temos lá nossas sérias dúvidas a respeito. E nossas desconfianças de que a tese é errônea nos saltavam à mente sempre que ele se aninhava em nossos colos à noite, unindo-se à família para assistir televisão, comer pipoca, ouvir música, ler livros e jornais, conversar sobre os fatos do dia. Ou quando ele subia as escadas carregando uma conta de luz na boca para que eu a transformasse em bolinha para brincar, uma vez que sabia que folhas de papel tinham o poder de virar bolinhas. Ou quando, nos dias frios, posicionava-se na cadeira mais próxima à lareira no aguardo do fogo que nos aconchegaria frente às provações do inverno serrano. Ou quando derrubava com uma patada certeira o montinho de moedas que eu recém esculpira e se escafedia no ato, sabendo ter feito sacanagem para zoar de minha cara. Irracional? Tá bem então, deixemos assim.
O fato é que esses pequenos seres como ele vêm ensinando aos da nossa espécie uma lição que já deveríamos ter aprendido por outras vias: a de que as relações podem, sim, ser embasadas em um bem-querer desinteressado, nas quais saem ganhando psíquica e emocionalmente todos os envolvidos. Talvez reconheçamos neles a manutenção de uma ingenuidade que teimamos em deixar cair dos bolsos de nossas existências já nos primeiros solavancos nas curvas de nossas vidas, e isso é o que os torna tão encantadores aos nossos olhos.
Facilmente passamos a amá-los e suas partidas nos doem fundo como a de qualquer outro ente querido. (Ir)racionais que somos, temos neles valorosos auxiliares para o resgate de sentimentos mais genuínos.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de julho de 2013)

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