sábado, 2 de agosto de 2014

Medo da dentista

Tenho medo de ir ao dentista. Não, errado. A frase correta, que se aplica a meu caso (porque é de meu caso que estamos falando aqui, a princípio, ou seja, partimos, como toda crônica requer, do caso pessoal do cronista para que se possa produzir o fenômeno da universalização do texto, obtendo assim a identificação com as experiências pessoais de todos os leitores). Fechei parêntesis e não concluí a frase. Isso é um erro, cometido pelo abuso da prolixidade e pela desnecessária aula sobre a essência da crônica. Comecemos de novo.
Dizia que tenho medo de ir ao dentista, mas que a frase assim, generalizada, estava errada ou, melhor, imprecisa. O correto, em se tratando de meu caso, seria dizer que tenho medo é de ir à minha dentista, em específico. Ou seja, não temo o ato simples e prosaico de me dirigir até o consultório de qualquer um desses tão importantes profissionais e abrir-lhe a boca, a fim de que ele proceda aos procedimentos (aviso de repetição empobrecedora de texto) necessários para a manutenção de minha saúde bucal. Não, esse tipo de paúra (“medo”, em dialeto, eis que eu agora uso singelos termos em dialeto), pois que a abandonei junto com a infância.
Meu temor agora é de outra natureza, mais brando, mais próximo, já que o negócio aqui precisa ser preciso (novo aviso de repetição empobrecedora de texto), mais próximo do simples receio. O que tenho, então, para ser preciso, é receio de ir à minha dentista. Pronto. Conseguimos, com a ajuda dos pacientes leitores, encontrar a frase correta para o início deste texto: tenho receio de ir à minha dentista (agora vamos ao motivo).
Tenho receio porque ela, compenetrada sempre na sequência do manuseio de seus aparelhos, a enfiá-los e retirá-los, cada um por sua vez, de forma alternada, dentro de minha boca (a broca, a pinça, a haste de metal que cutuca, o algodão, o sugador, o ferrinho nem-ouso-imaginar-para-que-serve, o caninho de enxágue), ela acaba me descabelando todo e salpicando minhas bochechas e minha testa com respingos de água e de diversos produtos. Arruma meu sorriso e desalinha o conjunto. Saio da cadeira e ganho as calçadas parecendo ter acabado de fugir de uma das trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

E como recebo esses olhares espantados e estranhados no caminho até o carro? Ora, alargando orgulhosamente o sorriso, agora reluzente e brilhante. Afinal, o resultado de enfrentar os medos acaba sempre sendo positivo. E, semana que vem, retorno ao consultório municiado de pente e lenço, porque também não dá pra seguir a vida toda sendo baúco (outra vez o dialeto... esse não vou traduzir).
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de agosto de 2014)

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