sexta-feira, 6 de maio de 2011

A vida supera Borges

A vida imita a arte, já disse alguém, embasbacado com situações do mundo real que melhor se encaixariam em obras de ficção. Mas a imaginação dos criadores de histórias dificilmente consegue superar em originalidade a vida como ela é, para deleite e espanto de quem tem sensibilidade para detectar os estranhamentos que se dão ao seu redor, em sua esquina, dentro de si mesmo, muitas vezes.
Dia desses, por exemplo, fiquei grilado com uma notícia vinda do México. Ela dizia que o idioma ayapaneco, falado há séculos por tribos indígenas mexicanas, está em vias de extinção, uma vez que só existem ainda duas pessoas que dominam com fluência o idioma, ambas já longevas. Até aí, nada de estranho, uma vez que o fenômeno do desaparecimento de línguas indígenas é algo que tira o sono de antropólogos, sociólogos e linguistas há muito tempo, desde que a humanidade evoluiu do simples massacre das culturas para a compreensão de que é necessário preservá-las.
O surpreendente reside no fato de que a língua, na verdade, já está essencialmente morta, apesar de ainda viverem as duas únicas pessoas que a conhecem, pela simples razão de que elas se recusam a conversar uma com a outra. Manuel Segovia, 75 anos, e Isidro Velázquez, 69, moram a 500 metros um do outro mas não se falam e não explicam a razão do desafeto que há entre eles. Isso para desespero dos pesquisadores, para quem a língua ayapaneco já é uma morta-viva, uma zumbi das línguas. Há um antropólogo norte-americano envolvido no projeto de criar um dicionário de ayapaneco, antes que Velázques e Segovia morram e enterrem com eles o tesouro linguístico.
Conforme o americano, Segovia tem um temperamento facilmente irritável enquanto Velázquez é mais fechado e reluta em sair de casa. Ambos negam a animosidade, porém, concordam que não possuem nada em comum que os leve a conversar um com o outro. Nem mesmo Jorge Luis Borges conseguiria imaginar uma situação semelhante em sua rica obra literária calcada em estranhedades. Só mesmo a Vida, essa autora original, geradora de roteiros únicos a cada esquina, a apenas dois passos do alcance de nossas sensibilidades. Como se diz “até a próxima”, em ayapaneco?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de maio de 2011)

2 comentários:

Anônimo disse...

Tá falando sério dessa estória dos dois tiozinhos mexicanos? Háh!, mas que barato! Isso, sim, daria uma boa novela.
:-D

J.Cataclism

marcos fernando kirst disse...

Ola, Cataclism!
Sim, a historia da dupla de mexicanos que não se fala em lingua nenhuma é real, saiu em ZH, dia desses. De fato, daria uma bela novela mexicana... hehehe....