sábado, 6 de agosto de 2011

Fáceis descartes



Se eu fosse psicólogo e tivesse a mim mesmo como paciente, eu diagnosticaria em mim uma insana compulsão em apegar-me a determinados objetos, por razões que nem Jung seria capaz de desvendar. Deve ser alguma espécie de obsessão ou compulsão ainda não suficientemente estudada, que, se bem analisada, poderia explicar muita coisa. Que perigo!
As canetas, por exemplo. Tenho um dó profundo em desapegar-me delas, quando elas secam. Seja uma humilde Bic ponta porosa ou uma Montblanc (eis outro traço de minha megalomania, uma vez que jamais tive uma Montblanc, a BMW das canetas, e cito-a aqui apenas para obter efeitos literários), dói-me sempre n’alma despachar as pobrezinhas lixeira afora. Exauridas as suas essências tinteiras, é duro desapegar-me delas, justo elas, com as quais escrevi poesias – traços de minha alma –, crônicas – vestígios de meu olhar sob o cotidiano –, cheques – indícios do naufrágio de minhas finanças –, listas de supermercado e outras manifestações escritas de minha existência. Mas não me é fácil. Ponho-as fora, sequinhas como estão, e verto para dentro uma lágrima incolor de adeus ao pequeno objeto. Loucura, eu sei. Loucurinha do dia-a-dia, dessas que a gente cultiva sem alardear muito.
Pior é que não são só as canetas que provocam em mim tal sentimento. Tenho-o também em relação aos guarda-chuvas, especialmente ao vê-los inertes nas esquinas ou no meio-fio das calçadas em dias de chuva e vento, quando suas frágeis estruturas não resistem à violência das intempéries e transformam-se em um amarfanhado informe de pano e ferros retorcidos. É com angústia que percebo a facilidade (e até a raiva) com que os proprietários se desfazem de seus guarda-chuvas quando um súbito pé de vento os esbrodonga (esbrodongar é o verbo que melhor ilustra essa ação), tornando-os inúteis para cumprir sua tarefa. Suas carcaças são lançadas ao chão sem maiores ritos de despedida, e esfacelam-se sob as rodas do primeiro veículo que passe zunindo. Que dor.
Como nos desvencilhamos fácil de tudo aquilo que repentinamente não nos tem mais serventia. Muitas vezes, até de gente...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro, em 5 de agosto de 2011)

2 comentários:

SandmanIsHere disse...

Essas "insanas compulsões" estão em todos. Alguns não percebem, outros preferem não comentar para não deixar evidente o quanto possuem problemáticas (daquelas que solucionáticas parecem completamente inexistentes rsrsrs), mas é fato que todo ser tem essas necessidades de apego seja por objetos, seja por pessoas, seja por transformar pessoas em objetos e/ou vice versa. Eu como sou um cara bem compulsivo, maniático, metódico e cheio de patologias (risos), também me desespero ao notar, às vezes, o quanto algumas pessoas conseguem se desfazer, se desvencilhar de certas coisas e de "gente" também, mas quem nunca virou-se para alguém e desabafou: "adeus, a sua validade venceu na minha prateleira"? Confesso que eu fiz mais dessas com seres do que com objetos (será porque estes incomodam menos do que aqueles?). Semana passada mesmo, saí de uma livraria e peguei-me cheirando o livro embrulhado em papel festivo. Ele estava querendo me dizer que já é mais um objeto que de mim não se afastará e que, de forma alguma, será um "fácil descarte". Puxa, Marcos, teus textos sempre me fazem viajar muitooo para dentro de mim.
Vastos agradecimentos!!!!

Pandora disse...

Como disse o SandmanlsHere: "Essas "insanas compulsões" estão em todos. Alguns não percebem, outros preferem não comentar para não deixar evidente o quanto possuem problemáticas..."

Eu também tenho dificuldade de me desvencilhar de minhas canetas, sinto pena quando meus lapis de escrever vão minguando diante de minha necessidade frenetica de escrever, também tenho pena dos frascos de perfume quando eles vão acabando eu vou ficando com pena... quando acabam não sei o que faça deles.

E sempre acho engraçado e um tanto tragico pensar que enquando eu fico com pena de jogar canetas vazias, fracos secos e derivativos fora há quem jogue pessoas fora com tanta facilidade.