segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Tomate para guacamole

Dia desses fui à quitanda comprar um tomate para fazer guacamole, a fim de aproveitar um abacate que habitava a geladeira e já estava passando do ponto de maturação. Percebe-se esse ponto por meio da técnica do toque na casca aliada ao mais refinado grau de sensibilidade gastronômica, obtida após muita experiência culminada no descarte de quilos de abacates imprevidentemente não tocados na hora certa.
Cheguei na quitanda e fui anunciando ao quitandeiro: “Quitandeiro, me veja aí um belo exemplar de tomate porque hoje vou fazer guacamole”! O quitandeiro não imaginava ser ele um quitandeiro (pois que virara quitandeiro uns 20 anos depois de o termo sair de moda) e tampouco supunha ser possível produzir guacamole a partir de um tomate (o termo, para ele, soava pastoso e repugnante), mas, mesmo assim, para não perder a venda, providenciou de pronto um lustroso exemplar que despontava, todo empinado e faceiro, por entre a tomatada geral encerrada no cercadinho de madeira reservado aos tomates.
Peguei em mãos o rubro espécime e, enquanto o quitandeiro batia na máquina de calcular a soma de minhas compras, eu me detinha a admirar as qualidades visuais do suculento produto. “Mas que belíssimo fruto este tomate aqui, hein, quitandeiro”, exclamei. O quitandeiro não respondia nada, absorto no ensacar de minhas aquisições, classificando-me mentalmente como beócio por julgar ser o tomate um fruto (o que de fato o tomate é, e beócio é quem me chama) e começando a não achar graça alguma naquilo de quitandeiro para cima dele, pois, assim que eu saísse, telefonaria para a filha pedindo que trouxesse à tarde o dicionário para ele dar uma olhadinha, para o espanto descomunal da menina frente a pedido tão esdrúxulo do quitandeiro pai.
Cheguei em casa são e salvo e logo pus mãos e avental à obra. Parti o tomate ao meio com uma facada certeira e ali tive a surpresa desagradável: estava podre por dentro, o maldito fruto quitandal. Esqueci que não se deve julgar um livro pela capa e muito menos um tomate pela casca. Aquela quitanda estava fora de moda e passada do ponto. Segredos como esses não vêm descritos nas receitas e dependem da vivência do cozinheiro. É o que se aprende, com certo custo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de outubro de 2011)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Deus nos livre!

Graças a Deus que nunca fui e jamais serei candidato à Presidência da República nem no Brasil e muito menos nos Estados Unidos. A profundidade desse meu alívio psíquico pode parecer inverossímil para quem pouco me conhece, e, para não passar tão facilmente por megalômano, ponho-me de pronto a me explicar. Esse meu alívio se dá pelo fato de que, se por ventura os caminhos da vida me tivessem conduzido para o universo da política e eu calhasse vir a ser o nome escolhido para defender as ideologias de meu partido na Presidência de República, teria eu a obrigação de não me furtar a comparecer a debates e a entrevistas, situações nas quais ser-me-ia invariavelmente impingida a seguinte pergunta: o senhor acredita em Deus?
Como bem sabemos, a questiúncula já deixou em maus lençóis e de saias curtas candidatos ao cargo máximo da administração pública, entre elas, figuras conhecidíssimas no Brasil (como Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Roussef) e nos Estados Unidos (Bill Clinton), países que se dizem laicos no discurso oficial mas nos quais os temas religiosos são tão importantes no cotidiano das pessoas quanto nos chamados países teocráticos. Vários materialistas e ateus convictos tiveram de rebolar para fugir da resposta honesta e direta à pergunta (que, no caso de muitos deles, seria um simples “não”, desses que se usa para negar alguma coisa), a fim de evitarem perder uma massa de votos crucial para suas eleições. Desconversaram alguns, mentiram outros, e assim elegeram-se muitos, que souberam driblar a saia justa aparentemente tão prosaica, mas no fundo tão decisiva.
Onde entram eu e minha consciência nisso tudo? Primeiro, repito meu alívio de não ser candidato ao cargo em nenhum desses países, agora que já consegui passar a dimensão da coisa toda. Passo então a explicar o motivo do alívio: porque eu, no caso de ser confrontado em público com o questionamento, simplesmente não saberia o que responder. Minha resposta sincera teria de ser algo do tipo: “esta manhã acordei acreditando um pouco mais do que ontem. Semana passada eu passei não acreditando nadica de nada, e tudo leva a crer que amanhã estarei fervorosamente crendo. Mês passado, no entanto, eu andava ateíssimo que chegava a dar dó”. Dessa maneira, não levaria um voto sequer, creio que nem mesmo o meu.
Isso se dá porque existem no mundo gentes como eu que são habitadas por múltiplas facetas de pensamento, que se alternam e duelam entre si, coabitando harmoniosamente o meu íntimo. Consigo conviver racionalmente com visões muitas vezes antagônicas de mundo, dependendo de meu estado de espírito ou do rumo que andam tomando minhas reflexões. Acho o mundo interessante e impressionante demais para simplesmente descartar por completo certas maneiras de pensar e de encarar a existência. Acho todas elas fascinantes, e aprecio saborear a sensação que cada uma me proporciona, durante certos períodos. Depois me canso e parto para outras. Encarno em mim a metamorfose ambulante sem ter de cantar Raul, e me desobriguei há tempos de escravizar-me a supostas coerências. Sendo assim, que credibilidade teria eu para presidir alguma república, seja ela qual for? Nem mesmo uma de bananas. A muito custo, presido a democracia anárquica de meus pensamentos...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 28 de outubro de 2011)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Cada um com seus parentes

Parentes de além-mar me dão notícia da existência de um primo distante residente em Sintra (distante, pois, nos dois sentidos), proprietário de uma fábrica de móveis antigos. Vende ele, portanto, aos patrícios lusitanos, mobília velha novinha em folha, recém saída dos tornos, com cheirinho de cedro recém abatido. Imagino poltronas lascadas, descascadas, com silhuetas fora de moda, sendo produzidas em série e comercializadas como provenientes de nobres famílias decadentes que há décadas tiveram de se desfazer de seu patrimônio para saldar as dívidas acumuladas pelos anos de opulência e desregramento social. Ora, pois, fábrica de móveis antigos... Estranho, no mínimo, não?
Isso me fez lembrar de um tio-avô que vivia em minha longínqua (porém um pouco mais “pertínqua”) Ijuí natal e que possuía, no centro da cidade, uma lojinha de secos e molhados voltada aos habitantes das colônias circundantes, intitulada “Casa das Essências”. Entre os frascos de ácido acético para fazer vinagre em casa, saquinhos de ácido bórico para produzir veneno contra baratas, lúpulo e cevada para fabricar cerveja caseira e pozinhos para fazer sorvete no freezer da mãe, ele comercializava um artigo que fazia a família olhar de soslaio e torcer o nariz: bisnagas de essência de mel de abelha. E dava de graça a receita ao cliente: uma bisnaga daquelas derramada em um balde de tantos litros de água mais não sei quantos quilos de açúcar e tanáááááá! Você obtinha não sei quantos quilos de mel puro e fresquinho! Meu tio-avô tinha, assim, a capacidade de ensinar os colonos ijuienses a se transformarem em abelhas... e a ludibriarem seus clientes nas vizinhanças de Santo Ângelo, Cruz Alta, Catuípe e outras proximidades.
Ainda não descobri qual o ente familiar que une esse meu tio-avô com o tal primo distante residente em Sintra. Espero que seja bem longínquo mesmo. E rezo para que a propensão não integre a carga genética da família, uma vez que eu, por ora, apenas ludibrio telas em branco de computador por meio dessas semanais maltraçadas linhas virtuais...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de outubro de 2011)

domingo, 16 de outubro de 2011

Essas sensações que nos invadem

Não quer dizer muita coisa se o céu amanhece azul, despovoado de nuvens, especialmente depois de vários dias chuvosos que nos obrigaram a preferir ficar em casa a ter de esgueirar-se pelas quebradas da cidade em cumprimento de nossos incessantes deveres de existir. Não quer dizer se a temperatura está amena, convidando as camisas de manga curta dos rapazes e as saias das moças a se espreguiçarem e saltarem dos roupeiros para acompanhar nossos corpos a desfilar pelos shopping centers da região. Não quer dizer se é início de primavera e inesperadas pétalas de rosa pousam em nosso jardim, trazidas de longe por um rápido pé de vento morno que, de passagem, despenteia a legião de vizinhos que se encaminha para a parada de ônibus ali da esquina, rumo a mais um capítulo de suas vidas.
Nada disso quer dizer coisa alguma se, justamente naquele dia, sua alma acorda chovendo para dentro. Às vezes, não tem explicação, não há motivo racional e identificável nenhum que justifique esse estado de espírito que te deixa amarrotado nas ideias e lento de movimentos. Às vezes, é simplesmente isso mesmo: lá fora é primavera e você se faz inverno. Algo desregulou o ciclo das estações de seu estado de espírito e coloca você em descompasso com a atmosfera que o circunda, e nem adianta ficar buscando motivos. O canto feliz de um pássaro equilibrado no fio do poste de luz ali fora desvia a sua atenção de si por alguns segundos, mas nem isso é capaz de içá-lo para a superfície do poço em que o ato de ser e estar se transformou repentinamente.
Quando isso ocorre em um final de semana ou feriado, uma boa maneira de lidar com a coisa é aproveitar o excesso de pena de si mesmo para tentar transformar a sensação em inspiração para a produção de um poema sensível. É claro que, via de regra, você no máximo vai conseguir deitar ao papel um poema meloso, repleto de lugares-comuns e candidato a aterrissar em seguida no cesto do lixo (isso se você for uma pessoa dotada de bom senso e de um grau mínimo de autocrítica). Mas quando o fenômeno se dá em dia normal de trabalho, em que é preciso arregimentar forças psíquicas a partir de reservas emocionais que nem mesmo você imaginava possuir, aí, meu amigo, a coisa aperta mesmo, e qualquer movimento causa uma dor inexplicável que você sente não se sabe exatamente onde, mas percebe que ela está ali, incomodando, e não há aspirina que a extirpe.
O feitiço, porém, nem sempre é tão poderoso, e basta uma gentileza inesperada, um telefonema amigo, um sorriso brilhante acompanhado de um “bom-dia” pronunciado com vontade, para que a nuvem se desfaça e retomemos nas mãos a condução de mais um fundamental dia de nossas vidas, como o são todos aqueles que nos são dados viver. Nunca sabemos o poder curativo alheio que existe latente em pequenos gestos que muitas vezes esquecemos de exercitar. Sim, senhores, essa é uma crônica de autoajuda. Tenho o direito adquirido de, uma vez na vida, praticar uma delas. Aliviou meu início de dia.
(Crônica publicada no jornal Informante em 14 de outubro de 2011)

sábado, 15 de outubro de 2011

Os olhos de quem vê

Nós, jornalistas, aprendemos cedo, nas aulas de jornalismo, que não existe verdade absoluta, apesar de a busca pela fidelidade dos fatos ser o dever primordial e incansável de nossa profissão, semelhante à sina dos cavaleiros andantes em suas jornadas à procura do Santo Graal. Como bem sabemos os que lemos as lendas arturianas, encontrar de fato o cálice sagrado é o ponto menos importante da jornada. O processo de transformação do cavaleiro se dá justamente durante o transcorrer da busca, quando, ao enfrentar perigos, ocorre o fenômeno do autoconhecimento e o consequente amadurecimento do personagem, que seria, em última instância, simbolicamente, a conquista do Graal.
Nós, jornalistas andantes, temos ciência de que não existem verdades absolutas, mas, sim, versões dessas verdades, narradas a partir da ótica de cada testemunha. Tenho um exemplo claro e vívido da veracidade desse axioma sempre que me ponho a assistir a uma partida de futebol sentado no sofá da sala de casa, ao lado de minha esposa. Somos apenas duas pessoas compartilhando o mesmo ambiente (o gato não conta aqui, pelo bem da credibilidade jornalística), mas assistimos a partidas diferentes.
Terça-feira à noite o fenômeno se repetiu, durante o amistoso da Seleção Brasileira contra o México. Arrepiei-me de susto quando, no segundo tempo, um atacante mexicano atentou contra nossa meta e um valoroso cruzado amarelo de nossa zaga cabeceou o arredondado Graal para a linha de fundo, sobre o travessão. Suspirei de alívio, enquanto minha mulher se torcia de raiva ao meu lado, exclamando: “Droga, ele cabeceou mal e botou para fora”! Mirei-a, aparvalhado, até perceber que, enquanto eu via o México atacando e nós defendendo bravamente, ela testemunhava outra situação: imaginava que quem atacava era o Brasil, e o zagueiro defensor salvador da pátria se transformava, aos olhos dela, em um incompetente atacante que cabeceara para fora. Ela havia confundido os lados do campo.
Quantas vezes em nossas vidas, ao acelerarmos nossos prejulgamentos e preconceitos de plantão, não estamos nos colocando no campo inverso de uma situação? É quando corremos o risco de botar bola fora ou de cometer gol contra.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de outubro de 2011)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Eu tenho um sonho

Eu tenho um sonho. Não exatamente igual ao do líder religioso e social norte-americano Martin Luther King (1929-1968), mas tenho também um sonho e, em minha fé de sonhador, julgo-o concretizável. Enquanto estou desperto, imagino esse meu sonho tão fervorosamente que chego a sonhar de fato com ele quando estou dormindo. Assim, o sonho-esperança que alimento acordado se transforma em sonho-sonhado quando durmo, ambos unindo forças psíquicas na construção do desejo de transformá-lo em parte integrante da realidade.
Meu sonho, esse, é ver, um dia, o livro transformado em objeto de desejo das massas planetárias, a ponto de ser disputado pelas pessoas, e a literatura transformada em obsessão intercontinental da mesma forma como acontece com o rock and roll e com a música sertaneja. Gostaria de viver em uma era em que seria temerário deixar um livro à vista em cima do banco traseiro do veículo quando estacionasse em algum parque e me afastasse, correndo o risco de ver meu carro arrombado e o livro furtado por temerários e destemidos ladrões de cultura. Tudo contra o crime de roubar, nada a favor do roubo de livros, mas tudo a favor do desejo incontrolável de possuí-los e querer lê-los, a ponto de ser arriscado deixá-los à solta, o que, atualmente, não é o que acontece.
Observe a solidão de um pobre livro abandonado em um banco de praça. Quantas horas você imagina que ele ficará ali, jogado ao sabor das intempéries e vulnerável à mira certeira dos pombos, antes que alguém se interesse me recolhê-lo e dar-lhe o abrigo de um lar e o aconchego de um par de olhos que se coloquem a lê-lo? Cruel mundo esse, que não se preocupa um pingo sequer com a orfandade dos livros. Até as baleias já têm quem as defenda e perca por elas o sono. Já os livros, disparam olhares esperançosos por detrás dos vidros das vitrines das livrarias a cada raro transeunte que para e olha, mas mais raros ainda são os que escutam o chamado, entram e adotam um deles, por módicos valores.
Quisera eu viver em um mundo em que uma palestra de um escritor lotasse estádios de futebol com pessoas interessadas em ouvir o que ele tem a dizer, além daquilo que já escreveu e que a tantos encantou por meio do deleite da leitura. Que surgisse uma revista semanal intitulada “Rostos, Folhas de”, esmiuçando a vida pessoal dos escritores para saciar a fome de conhecimento sobre suas interessantíssimas personalidades, as páginas com muitos textos e poucas fotos. Que as tiragens de suas obras fossem contadas às dezenas de milhares e que escritores fossem convidados para protagonizar comerciais de televisão e campanhas beneficentes. Que os escritores virassem celebridades a ponto de serem convidados para participar de reality shows televisivos intitulados “Casa dos Escribas” e ficassem confinados lá dentro meses e meses debatendo literatura e levando a audiência das televisões a estratosféricas alturas.
Mas, como eu disse lá no começo, o que eu tenho é um sonho. Acho que ando lendo demais...
(Publicado na seção "Planeta Livro" da revista Acontece Sul, edição de outubro de 2011)

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A alegria do lixo

Tenho uma leve desconfiança de que alguns dos sacos de lixo produzidos aqui em casa estão entre os mais faceiros de Caxias do Sul. Isso se explica pelo fato de que não é raro eles serem levados para passear por vários pontos da cidade, esquecidos no porta-malas do carro, quando deveriam ter sido somente transportados até cinco quadras adiante e despachados nos coletores seletivos públicos ali instalados.
A mente atopetada de pensamentos que transitam pelos compromissos a serem cumpridos assim que a chave faz o motor do veículo girar acaba esquecendo frequentemente dos passageiros detritais recém colocados no bagageiro e me faz rumar direto para o centro da cidade ou para outros bairros no atendimento a reuniões de trabalho, entrevistas, pesquisas e demais atividades. E lá seguem junto os saquinhos repletos de descartes, pulando alegremente a cada solavanco proporcionado por quebra-molas, eventuais buracos, freadas e arrancadas.
Poderia até imaginar a algazarra deles circulando pelas ruas da cidade, gargalhando a cada nova arrancada e fazendo piruetas no claustrofóbico espaço do porta-malas durante a rodagem pelas perimetrais. Dia desses só fui me dar por conta de que os havia esquecido ali quando sua presença foi denunciada pelo trabalho atento de meu nariz, que reconheceu dentro do veículo o aroma da sobra do macarrão almoçado no dia anterior. Descartei-os em uma lixeira em Farroupilha, os mais viajados de todos.
Nada disso se compara ao episódio provocado pela distração de uma ex-colega minha de jornal, que, certa feita, ainda estudante de jornalismo, saiu de casa apressadamente para pegar o ônibus e ir para a universidade levando consigo o saquinho de lixo que deveria ter sido descartado na lixeira da esquina do prédio onde morava. Deu-se conta de que transportava o repelente volume consigo só quando ergueu o braço para se segurar no corrimão do ônibus lotado, já em movimento, e encarou o saquinho face a face, ali, feliz da vida, agarrado à sua mão e indo para o campus com ela. Nessa sociedade de consumo e do descarte, não são todos que conseguem se livrar fácil do lixo que produzem. E isso que, por enquanto, nem estou sendo metafórico...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de outubro de 2011)

domingo, 2 de outubro de 2011

Uma mágica dica

Na infância e adolescência vividas em Ijuí, minha cidade natal, nossa casa situava-se no número 119 da Rua dos Viajantes. O maior viajante da rua – de não mais de 400 metros de extensão ­–, tenho certeza, era eu, que passava as tardes depois das aulas – e dos respectivos deveres – sentado sob a sombra de uma grande timbaúva que imperava no centro do pátio, lendo. Nesses primeiros destinos a que fui conduzido por minhas incipientes leituras, um dos portos mais significativos em que desembarquei foi no das crônicas de Luis Fernando Verissimo, pelo início dos anos 80 do século passado.
Lá se vão já umas boas dumas três décadas, quando eu vivia aqueles meus 15 anos com o cheiro de carro novo que essas primeiras idades trazem com elas. Certa tarde, cansado de produzir histórias em quadrinhos com canetinhas hidrocor ajoelhado ao lado de minha cama, fui tomado por um impulso de proatividade e corri para a máquina de escrever que eu tinha ali, sempre à minha disposição, sobre a escrivaninha de madeira (sobre a qual repousa hoje o notebook em que elaboro essas crônicas, daqui de Caxias do Sul), e decidi escrever uma carta. Até aí, nenhuma novidade, pois naquela época eu era um missivista dedicado, possuindo uma extensa rede de amigos (numa era pré-facebook) epistolares espalhados por todos os cantos do país, com os quais debatia assuntos diversos. O novo e a ousadia residiam no destinatário a quem, daquela vez, enviaria uma tentativa de contato: Luis Fernando Verissimo, o escritor que eu tanto começava a admirar.
Enfiei o papel na máquina e mandei bala nas teclas, fazendo saltitar a fita bicolor (preto e vermelho) e externando minha admiração pelo autor, revelando que eu acalentava o sonho de um dia me tornar escritor e, na ingenuidade daqueles priscos anos, solicitando dicas que pudessem me auxiliar na condução para o sucesso. Envelopei a missiva, colei os selos com cola Tenaz, caminhei até o centro da cidade e despachei pelo Correio a ousadia endereçada à Editora L&PM, que na época publicava suas obras. Duas semanas depois, a leitura de algum livro de Sherlock Holmes, à qual eu me dedicava em outra mormacenta tarde ijuiense na Rua dos Viajantes, foi interrompida pela chegada do carteiro que, entre o maço de correspondências, me brindava com uma inacreditável resposta de próprio punho escrita por Luis Fernando Verissimo. Baita viagem! E, daquela vez, real!
O cronista gaúcho aniversariou na última segunda-feira, dia 26 de setembro, quando completou 75 anos de idade. Fazendo rápidos e fáceis cálculos, concluí que ele tinha mais ou menos a idade que possuo hoje, quando, 30 anos atrás, roubou pedaços de seu tempo para dar atenção a um fedelho ousado que lhe escrevia pedindo dicas mágicas para virar escritor. Não revelo o conteúdo da carta, que obviamente guardo como relíquia até hoje, juntamente com as outras duas que ele me enviou na época, e das quais certamente não se lembra. Só sei que, em dado momento, quando tocava na questão da fórmula mágica, ele citava a necessidade de obter ingredientes como filtros fumegantes e pêlos de núbias virgens. Meu problema, pensando bem, não foram as viagens a partir da Rua dos Viajantes... foi, isso sim, nunca ter investigado o que eram núbias...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 30 de setembro de 2011)