quarta-feira, 31 de julho de 2013

Hora da novela

Depois de muito tempo, voltei a assistir a uma novela da Globo. Fiz os cálculos e descobri que já havia uma década que eu não acompanhava uma novela, visto que a última foi “O Beijo do Vampiro”, exibida em 2003 no horário das 19h, com Flávia Alessandra e Tarcísio Meira (impagável no papel do vampiro Bóris). Antes disso, eu assistira a “Vamp”, em 1991, que teve as marcantes atuações de Ney Latorraca (Vlad) e Claudia Ohana (Natasha). Essas duas eu vi devido ao tema do vampiro, que me intriga, aliado a uma abordagem humorística que funcionou muito bem em ambas.
Antes dessas, eu havia seguido também atentamente os capítulos de “Roque Santeiro”, na versão exibida em 1985 e que imortalizou personagens como a Viúva Porcina na interpretação de Regina Duarte, o Sinhozinho Malta de Lima Duarte e o próprio Roque vivido por José Wilker. As dos anos 1970 e 1960, eu recordo de alguns títulos que me marcaram, apesar de não as ter acompanhado detalhadamente (“Cavalo de Aço”, “Selva de Pedra”, “Fogo Sobre Terra”, “O Casarão”, “Irmãos Coragem”, “Pecado Capital”, “O Bem Amado”, Dancin’ Days”). Acompanhei mesmo foi “Estúpido Cupido”, em 1976, com trilha sonora marcante e ambientada na fictícia cidade de Albuquerque, aterrorizada pelo “bad boy” Mederiquis (o Latorraca de novo).
Mas agora decidi assistir à refilmagem de “Saramandaia”, cuja primeira versão foi exibida em 1976, quando eu tinha apenas dez anos e não me era permitido ver uma programação televisiva que ia ao ar às dez da noite (“hora de ir pra cama, Marcos e Daniela”, diziam nossos pais, a quem, aliás, obedecíamos). Hoje já sou grandinho e me permito ficar acordado nesse horário para presenciar as hipnotizantes performances dos atores que revivem personagens como a Dona Redonda, o João Gibão, o Professor Aristóbulo e vários outros, seguindo a trama original saída da mente genial do saudoso Dias Gomes.

E que prazer redescoberto esse o de transformar em sagrado o horário da “minha novela”. Ah, que delícia poder dizer frases como “agora não atendo, estou assistindo à minha novela”; “amanhã não, amanhã tenho de ver a minha novela”; “depois, depois, agora tô vendo a novela”; “tá, mas só até as nove e meia, porque depois tem a novela”; “só se for após a novela” e “shhhh, silêncio, tô vendo a novela”. Ah, que prazer me sentir tão brasileiro!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de julho de 2013)

terça-feira, 30 de julho de 2013

A sabatina da fome

Sábado, duas horas da tarde. Conduzo o automóvel pelas ruas da cidade, cansado após horas de périplo solucionando demandas. Muita fome. Minha esposa saca o celular e descobre que a Hamburgueria Xis está aberta e, melhor, permanecerá atendendo ininterruptamente o dia inteiro. É para lá que vamos, afinal, muita, muita fome.
Chegamos. Entramos. Escolhemos mesa. Trocamos de mesa. Recebemos os cardápios. Muita, muita, muita fome. Escolhemos o que nos apetece. Chamamos o garçom. Fazemos o pedido. Chegam as bebidas. Esperamos e conversamos. Pouca gente no estabelecimento, afinal, já são duas e meia da tarde de sábado, toda a Caxias do Sul já almoçou, exceto nós, que estamos com muita, muita, muita, muita fome, mais aquele casalzinho que chega depois e senta perto, talvez nem com tanta fome assim.
Conversamos mais um pouco. Ela fala coisas às quais eu procuro dedicar atenção, porém, como estou com muita, muita, muita, muita, muita fome, tenho dificuldades em focar os sentidos na narrativa, já que todos eles se voltam para o vazio que se avoluma em meu estômago. Sempre que sinto muita, muita, muita, muita, muita, muita fome, passa a me assolar uma espécie de transe que só ameniza depois da primeira mordida. E eu estava com muita, muita, muita, muita, muita, muita, muita fome mesmo.
A demora na entrega de nosso pedido, no entanto, não condizia com o escasso movimento na hamburgueria. Os lanches já deveriam ter sido entregues há muito tempo, quando o casalzinho ao nosso lado recebe os deles e se colocam animadamente a devorá-los. “Pronto, esqueceram de nós”, anunciei. Peguei a comanda e fui ao caixa, reclamar da demora. De fato, alguém se atrapalhara no processo e nosso pedido havia ido para as cucuias. Feita a reclamação, não demorou dez minutos para que estivéssemos, enfim, devorando nossos hambúrgueres e saciando a famigerada fome.

Na hora de pagar, a surpresa: não houve jeito, a gerente estava irredutível em sua decisão de não nos cobrar pelos lanches. “Cobrarei somente as bebidas. Afinal, o que atrasou foram os lanches”. Argumentei que erros acontecem, estava disposto a pagar a conta toda, sem problemas. Não teve jeito. Ela estava determinada a se redimir e fidelizar os clientes. Definitivamente, conseguiu. Ela tem a raríssima fome do bom atendimento.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de julho de 2013)

segunda-feira, 29 de julho de 2013

No vinho, a verdade

Sim, sim, é verdade, eu aprecio um bom vinho. Em minha vivência de já mais de vinte anos aqui na Serra Gaúcha, aprendi a refinar o paladar para melhor detectar as surpresas sensoriais que afloram do contato com o líquido tutelado por Baco. Fiz cursos de degustação no Vale dos Vinhedos, viajei à França com grupo de jornalistas para visitar algumas cantinas instaladas nas tradicionais regiões viníferas daquele país, consumi literatura especializada, bochechei os mais variados varietais.
Por pouco não me transformei em um enochato. Felizmente, já faz tempo que tirei das costas a obrigação de transformar meu ato de apreciação de um vinho em um rito de iniciado, repleto de observações organolépticas (a própria palavra é intragável) que, a bem da verdade, nublavam com seus conceitos (e pré-conceitos) o simples prazer do usufruir, que percebi só conseguir obter a partir de uma postura mais descompromissada (até porque, cá entre nós, nunca consegui detectar toques de manjericão e de nozes em uma taça de merlot). Essa percepção relativa ao descompromisso da fruição serviu também para ressignificar minha relação com diversos outros aspectos de minha vida, tornando-a um pouco mais dócil, simples e prazerosa.
Dessa forma, sigo sendo, por exemplo, um leitor contumaz, mas minhas leituras não obedecem a nenhum método a não ser aquele ditado pela vontade do momento. Leio por puro deleite e, ao fazê-lo, me informo, cresço e me transformo sem dor. Sigo sendo um viciado em filmes, mas os assisto sem obrigações de nenhuma natureza e deles exijo apenas que sejam competentes na proposta que apresentam: se comédia, quero rir à larga; se terror, quero morrer de medo; se drama, que me suscite reflexões; se desenho animado, que me encante; se água-com-açúcar, que me arranque lágrimas escondidas; se policial, que prendam o bandido; se de ação, que dizimem metade do elenco de apoio; se de suspense, que me surpreenda no final. Só isso e nada mais.

Não preciso dar discurso iniciático frente a uma tacinha de carmenère, não preciso assistir só a filmes-cabeça, posso estar sim a fim de ler um best-seller e de dançar ao som de um bate-estaca. Deixei de cobrar satisfações e coerências de mim mesmo. Resultado: minha balança astral indica o sumiço de uns 300 quilos de sobre meus ombros...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de julho de 2013)

Como gostais


Eu não sou daqui e esse irremediável aspecto de minha biografia às vezes me coloca em saias justas frente ao desconhecimento de algumas nuances típicas da cultura regional. Por exemplo: sempre levo petelecos na orelha quando me ponho a elogiar a sopa. Eu nunca acerto. É uma loteria de apenas dois números e eu sempre aposto no errado. Quando digo “slurrp, que maravilhosa essa sopa de capeletti”, logo levo um xingão da nona que fez a sopa: “não é de capeletti, é de agnoline, toseto”. Na vez seguinte, mando bala com segurança e arremeto, com uma colher numa mão e uma fatia de pão de forno na outra: “slurrp, mas que delícia essa sopa de agnoline”, e pá, levo outra da outra nona: “ma che agnoline o che, neno, isso é sopa de capeletti, non tá vendo?”.
Pois é, então desisto. Não de tomar as sopas, que adoro. Desisto é de tentar diferenciar agnoline de capeletti que, para mim, trata-se de absolutamente a mesmíssima e saborosa coisa. E che bela cosa, han? Mas mesmo assim, uma alma de repórter investigativo não desiste nunca e, apesar de minha prudente retração na hora dos elogios ensopados (minha avó já me aconselhava a não falar de boca cheia, pois bem feito para mim), decidi investigar a fundo a origem dessa celeuma.
Não vou revelar as fontes, mas minhas pesquisas andam indicando que a origem do problema remonta à região de Verona, na Itália, lá pelos idos da Idade Média. Havia duas famílias rivais que produziam massas para consumo. Uma delas, liderada por uma tal Julieta, fazia chapeuzinhos de massa recheados com carne bovina ou de frango, servidos em um caldo temperado, e os chamava de capeletti. Outra família, capitaneada por um Romeu, produzia chapeuzinhos de massa recheados com carne bovina ou de frango, servidos em um caldo temperado, e os chamava de agnoline. As duas famílias se odiavam por mais outros motivos relativos a um obscuro caso de amor que, séculos mais tarde, parece ter sido retratado nos palcos por um dramaturgo bretão, mas isso nada tem a ver com o nosso caldo.

Enquanto não desvendo todo o mistério, sigo sorvendo faceiro meus pratos fundos de agnolettis e capelines, especialmente nesses dias gelados, e as nonas que perdoem minha ignorância antes que isso se transforme em tragédia.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de julho de 2013)

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Brucutus globalizados

O cenário é um supermercado de uma grande rede nacional. Forro o carrinho com as compras, pago no caixa e me dirijo à porta do elevador que dá acesso ao estacionamento. O elevador chega, entro conduzindo o carrinho e aperto o botão da garagem. As portas vão se fechando quando avisto uma senhora se aproximando, também com seu carrinho repleto de mantimentos.
Rapidamente pressiono o botãozinho que mantém as portas abertas e espero a senhora chegar. Sem dizer nada (aqui caberia um “muito obrigada”, por exemplo), ela entra apressada, chocando seu carrinho contra o meu (instante em que cairia bem um “desculpe”) e ocupando seu espaço na caixa semovente, completamente muda. Ao chegarmos na garagem, a porta se abre automaticamente e eu volto a apertar o botão que a mantém aberta, cedendo minha passagem à mulher. Ao manobrar seu carrinho para fora, de novo bate no meu e se manda, muda como entrou, sem olhar para trás. Meus ouvidos não registram nem “desculpe”, nem “por favor”, nem “obrigada”, nem “bom dia”, nenhuma dessas coisinhas que indicam a diferença oceânica que existe entre um brucutu medieval e um(a) cidadão(dã) civilizado(a).
Na garagem, a senhora mal-educada ruma para sua caminhonetona, a fim de guardar as compras no porta-malas e partir célere para sua residência, onde certamente uma família a espera para o almoço. Noto, portanto, que não lhe faltam recursos financeiros para a aquisição de um carrão e para as compras de estufar carrinho no mercado. Faltam-lhe, sim, recursos humanos para exercitar a boa educação (aliás, me pergunto que educação ela proporciona a seus filhos em casa...), a civilidade, a cidadania, a convivência humana básica. Recursos esses que passam bem longe da questão financeira, ressalte-se bem.
O papa Francisco está de visita ao nosso país desde segunda-feira, para encontrar-se com jovens do mundo inteiro. Um dos mantras de seu papado é justamente a preocupação que ele demonstra com o que classifica como “a globalização da indiferença”. Concordo com ele, mas acrescentaria que eu, aqui em Caxias do Sul, ando também muito preocupado com a globalização da grossura. E se a grossura grassa entre os da minha geração, só nos resta mesmo é depositar fé em alguma mudança a partir da juventude. Caso contrário, o papo será caro...
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de julho de 2013)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

E nem sou pinguim

Não sei para você, leitor, mas, para mim, o pior do inverno são os momentos em que é preciso ficar pelado (“não escreva ‘pelado’, escreva ‘nu’”, aconselhou-me a esposa). Respondi que jamais escrevo nu, sempre escrevo vestido, e que o ato de escrever não se encaixava naqueles que eu estava prestes a elencar como os momentos horrendos em que é preciso ficar pe... nu, nos longos dias de nossos invernos serranos.
Pois reitero e sustento que a momentânea necessidade de colocar-se nu em pelo é, sim, a maior tortura a que nos submetem essas temperaturas siberianas. É quando a pele entra em contato direto com o invisível e intangível poder do frio extremado ali, no banheiro, de manhã cedinho, ao despirmos o pijama e as pantufas para nos arremessarmos para dentro do box do chuveiro, peladinhos, peladinhos, os poros fechando e formando bolinhas pelos braços e pernas como se fôssemos frangos congelados prontos para irmos, a passarinho, direto ao forno. E assim como entramos debaixo do chuveiro, saímos, também pelados (minha esposa sai nua), tremelicando ao sabor das passadas rápidas da toalha que nos vai secando e preparando para o almejado contato com a camiseta e a roupa de baixo acolhedora, as primeiras camadas de vestes que nos irão ensanduichar e nos colocar aptos a irmos à luta diária pela sobrevivência por esses nossos Cárpatos gelados.
Depois de passarmos o dia caçando focas, armadilhando mamutes, perseguindo pinguins e rodando trenós, retornamos aos nossos iglus para, já no aconchego do (ge)lar, novamente termos de nos despir, ficarmos pelados (eu) ou nus (minha esposa) na hora de tirarmos as roupas do dia e recolocarmos os pijamas. Aqui na Serra, toda a nudez não sei se será castigada, mas, no inverno, tenho certeza de que toda a nudez será bem gelada, isso sim.
Em meus devaneios tiritantes, tenho muita inveja de Bruce Wayne e Dick Grayson que, na mansão milionária em Gotham City, pulam numa espécie de mastro de pole dance e chegam lá embaixo na Batcaverna instantaneamente vestidos de Batman e Robin. Ao menos, era assim que acontecia no seriado televisivo dos anos 1960. Que maravilhosa invenção que falta inventar essa, a da cápsula do vestimento automático. Ou isso ou, aqui na Serra, andar sete meses sem trocar de roupa... hummm... Tá bem, amor, tá bem, vou apagar isso...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de julho de 2013)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Carol e os dinossauros

Pois é, eu não acredito em dinossauros. Não adianta, não adianta: não acredito. Já fui fascinado por esses bichos pré-históricos nos tempos da minha (também mesozóica) infância, mas hoje, quanto mais velho fico, menos fé neles deposito. Por que é que não consigo acreditar na veracidade desses esqueletos encontrados quase intactos nos mais diferentes pontos do planeta? Mas o que há de errado com meu aplicativo de crença? Será que precisa ser baixado de novo?
Lembro-me das figuras que ilustravam os livros de história e de biologia nos quais estudávamos no primeiro grau (na Era Mesozóica, que habitei, o ensino fundamental se chamava primeiro grau), mostrando que o petróleo, sugado por possantes máquinas lá do fundo dos desertos e dos oceanos, era um líquido viscoso fruto da sedimentação orgânica de restos de dinossauros. Ou seja: nos locomoveríamos em nossos automóveis hoje em dia enfiando dentro dos tanques um mingau de dinossauros. Balela! Eu, hein? Petróleo é petróleo assim como ouro é ouro, rabanete é rabanete, uma rosa é uma rosa e a Carol Portaluppi é a Carol Portaluppi. Falando em Carol Portaluppi, o que é que ela tem a ver com dinossauros? Nada, né, e deixemo-la de fora disso.
Eu não sei como é que se deu esse processo de eu ir desacreditando nos dinossauros ao longo dos anos de minha jurássica existência. Os pedacinhos da fé que eu tinha neles devem ter ido se desprendendo aos poucos e se estilhaçando nas calçadas da vida junto com minhas crenças nas religiões, na reencarnação, na vida depois da vida, nos discos voadores, no Papai Noel, na revolução socialista, no trotskismo, na fraternidade universal, nos números da mega-sena, nos partidos políticos, no Cid Moreira, na ONU, na boa fé alheia, nas relações desinteressadas, na previsão do tempo, no último reforço pro meu time, no respeito ao consumidor, na velocidade de minha banda larga, na digna aposentadoria do brasileiro, no crescimento espiritual da humanidade. No Bicho-Papão e no Lobo Mau eu ainda acredito, porque tenho encontrado diversos exemplares dessas espécies por aí, camuflados sob os disfarces mais variados, inusitados e inesperados.

Acredito na Carol Portaluppi, por enquanto. Mas, por favor, não me venham mais com dinossauros.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de julho de 2013) 

terça-feira, 23 de julho de 2013

O alienado da Maestra


Enforquei meu banho matinal no sábado passado porque tive de pular da cama às 6h30 a fim de atender a um compromisso inesperado. Faça chuva ou faça sol, caia neve ou haja clima de deserto, meu banho diário se dá sempre logo depois do café da manhã, já que é a única forma de amansar a rebeldia de meus cabelos e me apresentar condignamente à sociedade. Cumpridas todas as tarefas, cheguei em casa no meio da tarde, antegozando o prazer de dali a pouco usufruir um inusitado, quente e restaurador banho vespertino, quando tocou o telefone.
Atendi e era minha cunhada do outro lado da linha (mas no mesmo lado da cidade), anunciando que estava com visitas em casa e sem água devido à momentânea interrupção no abastecimento causado no final de semana pelas obras no Sistema Maestra. Queria que eu verificasse se na minha casa ainda vinha água da rua para, em caso de necessidade, levar a turma toda para banhar-se no chuveiro de minha residência. Fui lá ver e, de fato, a torneira do lado de fora não expelia uma gota sequer do precioso líquido.
Avisei a cunhada que a falta de água também nos atingia e, como eu não estava sabendo de nada, havíamos metido roupas na máquina pela manhã, laváramos a louça do jantar da véspera e do desjejum e minha esposa se banhara alegremente antes do informativo telefonema. Ou seja: eu não tinha a menor ideia de como estava o nível na caixa d´água de minha casa. Sem falar que meu banho sabatino foi-se por água abaixo depois daquilo. Quem manda passar um dia sem ler jornal, sem entrar no site dos veículos de comunicação da cidade, sem sintonizar uma das rádios? A notícia estava lá (verifiquei isso mais tarde), para quem quisesse ver (e acumular água nas chaleiras, panelas e baldes) e se prevenir. Nem todos possuem uma cunhada informada e prestativa que telefona avisando.
Claro que o final da história é positivo: o abastecimento de água se normalizou (ao menos, na minha casa) ainda na manhã de domingo e pude rapidamente me recolocar em dia com os rituais de higiene que me são característicos sem ter de atacar os vidrinhos de perfume da esposa ou de secar o desodorante. Só o que permaneceu cheirando mal foi a circunstancial postura de cidadão desinformado. Contra a alienação, não há xampu que faça milagre.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de julho de 2013)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Quando parte um amigo


Era meu grande amigo e professava essa amizade comigo cultivando um silêncio profundo que ressoava nos recantos da casa ocupados por sua presença constante. Havíamos nos entendido desde o início, sete anos atrás, quando pela primeira vez cruzou a soleira da porta e detectou que em nossa casa haveria para ele um lar, no qual compartilharia aconchego, atenção, carinho. Cedo revelou-se mestre na arte de retribuir na décima potência o amor que recebia, pautando sua relação conosco na prioridade ao afeto.
Dizem alguns doutos que os da espécie dele são desprovidos de razão, movidos apenas pela irracionalidade do suprimento de seus instintos básicos. Temos lá nossas sérias dúvidas a respeito. E nossas desconfianças de que a tese é errônea nos saltavam à mente sempre que ele se aninhava em nossos colos à noite, unindo-se à família para assistir televisão, comer pipoca, ouvir música, ler livros e jornais, conversar sobre os fatos do dia. Ou quando ele subia as escadas carregando uma conta de luz na boca para que eu a transformasse em bolinha para brincar, uma vez que sabia que folhas de papel tinham o poder de virar bolinhas. Ou quando, nos dias frios, posicionava-se na cadeira mais próxima à lareira no aguardo do fogo que nos aconchegaria frente às provações do inverno serrano. Ou quando derrubava com uma patada certeira o montinho de moedas que eu recém esculpira e se escafedia no ato, sabendo ter feito sacanagem para zoar de minha cara. Irracional? Tá bem então, deixemos assim.
O fato é que esses pequenos seres como ele vêm ensinando aos da nossa espécie uma lição que já deveríamos ter aprendido por outras vias: a de que as relações podem, sim, ser embasadas em um bem-querer desinteressado, nas quais saem ganhando psíquica e emocionalmente todos os envolvidos. Talvez reconheçamos neles a manutenção de uma ingenuidade que teimamos em deixar cair dos bolsos de nossas existências já nos primeiros solavancos nas curvas de nossas vidas, e isso é o que os torna tão encantadores aos nossos olhos.
Facilmente passamos a amá-los e suas partidas nos doem fundo como a de qualquer outro ente querido. (Ir)racionais que somos, temos neles valorosos auxiliares para o resgate de sentimentos mais genuínos.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de julho de 2013)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Talento vindo do nada é ficção

Não, não, não adianta. Lamento muito, mas simplesmente não tem outro jeito. Você não vai aprender a escrever bem, a organizar as ideias com coerência, a redigir com correção sem macular seu texto com erros grotescos de escrita, a apresentar ao leitor um estilo criativo e agradável, que valha a pena ser lido, se você não se transformar em um grande leitor. E para ser um grande leitor, você precisa ler livros. Livros de literatura, especificamente: contos, novelas, romances, crônicas, poesias, teatro, essas coisas.
É assim que funciona, e pronto. Não existe fórmula mágica para nada na vida, e essa lei (nada mágica) também se aplica ao domínio da ferramenta da escrita. Para ocupar um espaço na imprensa, ou no atual mundo virtual, ou mesmo nas estantes das livrarias, você precisa honrar o ofício em que pretende se envolver (como, aliás, em qualquer outra área de atividade), e dedicar tempo, suor e esforço a aprimorar-se nele. A coisa, meu amigo, não cai do céu, por mais que você deseje (se essa coisa for chuva, acaba caindo, sim, mas nem sempre na hora em que você espera, veja bem). De resto, repito, é preciso esforço pessoal, caso contrário, você jamais vai passar de um franco-atirador, que se desmascara a cada linha que (mal) traça, engambelando alguns poucos durante pouquíssimo tempo. Você será sempre apenas mais um aventureiro querendo fazer na marra aquilo que os outros se preparam a sério para fazer.
Tracemos paralelos, para que a compreensão melhor se dê. Um campeão olímpico de natação, por exemplo. Precisa treinar durante muitos anos, desde pequenino, todos os dias, várias horas ao dia, para chegar ao ponto de competir em uma Olimpíada e levar para casa a medalha de ouro. Em o fazendo, terá superado uma penca de outros iguais a ele, tão bons quanto ele, que também se esforçaram tanto quanto ele mas que, aí sim, naquele específico dia, nadaram uma fração de segundo mais lerdos do que ele. É só aí que entra em cena a sorte, o imponderável. O inexplicado só acontece para aqueles que se prepararam com seriedade para receber as benesses desse inexplicado.  
Eu, por exemplo, que não nado nada, jamais serei campeão olímpico de natação, e, se me jogarem na piscina olímpica junto aos competidores, afundarei igual a uma pedra de basalto, mas não conquistarei a medalha olímpica, nem por ação do inexplicado, nem por milagre, porque aqui se trata de mundo real, e não de ficção. A ficção reside é nas páginas dos tais livros, que a gente lê justamente para melhor compreender a realidade, por meio de seus paralelos e metáforas. E assim como eu não nado nada, também quem não lê (livros, literatura) não escreve nada. E ponto.
Lamento, não é birra minha. Simplesmente é assim, e os exemplos estão aí, falando por si próprios. Pedras não respiram, ratos não voam, água molha, a Terra é redonda e quem não lê não escreve nada. E quem nada, nada.
Informar-se, ler jornais e revistas em busca de notícias, navegar em sites e blogs e sítios na internet atrás de atualizações, ler livros científicos para obter uma formação profissional, são atividades inerentes à vida de todos os cidadãos que se inserem no mundo. Porém, somente a leitura de literatura habilita esse mesmo cidadão a tornar-se escritor e a ocupar sem desconforto (especialmente para os leitores) os espaços destinados a quem se dedica com seriedade ao meio (igual às piscinas olímpicas, que só são ocupadas por quem nada tudo).

Eu, de minha parte, não vejo a literatura como uma religião que deva ser defendida por missionários constantemente em busca de novos acólitos (quem lê sabe o que significa “acólito”, pois não?). Por mim, lê quem quer e não lê quem não quer. Só não tentem me convencer de que quem não lê consegue escrever bem. Porque não consegue. Para tanto, é preciso suar os olhos na leitura, conforme fazia, por exemplo, o saudoso jornalista e escritor Jimmy Rodrigues, falecido em junho deste ano, que em certas épocas de sua longa vida chegou a ler um livro por dia. Não foi por nada que escrevia de forma tão inigualável. Que pelo menos seu exemplo permaneça e frutifique.
(Texto publicado na seção "Planeta Livro" da revista Acontece Sul, edição de julho de 2013)

terça-feira, 16 de julho de 2013

E aquele pratinho ali...

Acontece muito comigo. Basta eu me dispor a comparecer a algum almoço ou jantar comunitário, desses típicos encontros festivos que em nossa região costumam ter lugar em salões paroquiais, em que os extensos mesões de madeira abrigam animados grupos de amigos e familiares confraternizando entre si e com desconhecidos, que a coisa acontece. E é comigo o negócio.
Explico. A gente se abanca (normalmente em bancos mesmo, formados por compridos tabuões de madeira sustentados por cavaletes estrategicamente dispostos a cada três metros) em algum ponto da mesona e já vai tomando posse, cada qual, de seu prato de plástico (desemborco-o logo, para saberem que aquele tem dono), dos talheres e do palito de dente, que muito útil será dali a pouco após a passada repetida dos espetos com salsichão, galeto, costela, e mais a maionese e a salada de alface e a de tomate com cebola, além da massa e do pãozinho (que nunca toco).
Vai-se comendo alegremente enquanto acumulam-se, a um canto do prato, os despojos imastigáveis da saborosa comida circundante, como os ossos das costelas, os ossinhos e cartilagens dos frangos e algum pedaço mal passado daquele vazio que colocaram correndo no fogo porque o salão lotou demais e pegou os assadores quase que desprevenidos. Solícito e atento às necessidades de meus circundantes, costumo providenciar junto aos servidores um pratinho para fazer as vezes de “cemitério” comunitário, destinado a acumular os refugos vindos dos pratos de todos em volta.

Até aí, tudo muito lindo. O problema se estabelece a partir do momento em que, estando todos já servidos e chacoalhando os pés, ávidos para começarem as bailanças, passam a ser recolhidos das mesas os utensílios utilizados no ágape: talheres, copos, pratos, guardanapos, garrafas, vão sumindo sem deixar vestígios. Porém, via de regra, justamente o meu prato é sempre esquecido e acaba ficando ele ali, sozinho na minha frente, os ossinhos nus e frios das coxinhas de galinha a me olharem e a escancararem a todos em volta o tamanho de minha gula saciada, como se só eu tivesse me atracado selvagemente no repasto recém servido. Sempre, e só comigo. Vai ver isso quer dizer alguma coisa...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de julho de 2013)

segunda-feira, 8 de julho de 2013

A vez em que perdi a linha

Foi em meados da década de 1990, no auge da febre dos bingos, que então pipocavam em todos os salões e cinemas abandonados, antes de esses locais passarem a servir de sede a novas igrejas, como acontece nos dias de hoje. Pois eis que resolvi adentrar certa noite em um desses estabelecimentos para ver qual é que era aquela dos tais de bingo, de que tanto falavam.
Logo me vi em um amplo ambiente, muito iluminado, várias mesinhas ocupadas por pessoas compenetradas em suas cartelas, os ouvidos atentos aos números cantados ao microfone de forma acelerada pelo homem vestido de mordomo lá no fundo do salão, postado ao lado de um enorme globo do qual as bolinhas iam sendo expelidas e exibidas em telões estrategicamente dispostos em diversos pontos nas paredes, para atestar a lisura da coisa toda. Tomei assento e já veio uma moçoila me vender as cartelas que estariam valendo a partir da próxima rodada. Peguei uma caneta hidrocor azul e aproveitei o tempo para estudar as sequências de números que povoavam minhas três cartelinhas da sorte.
Iniciou-se a nova rodada e eu estava dentro. “Oitenta e oito”, ecoava a voz no microfone, e eu corria os olhos e riscava um 88 na cartela do meio. “Três”... três, não tenho... “Dezessete”... 17 nessa, nessa e nessa! Abstraí de tudo em volta até o momento em que completei uma linha horizontal de números e não tive dúvidas. Emocionado, o coração aos pulos subindo à boca, as mãos geladas e a adrenalina amargando a língua, gritei bem alto, erguendo a mão com a caneta azul em riste: “bingo!”. Houve um “ooooh” geral no salão e parou tudo. A mocinha veio, recolheu minha cartela e a entregou ao homem do microfone, para conferir meu feito e providenciar o prêmio. No entanto, passados alguns segundos, ela retornou, sisuda. Devolveu-me a cartela e disse, seca: “Bingo é quando completa toda a cartela. O senhor só fez linha, mas linha já saiu”.

Ou seja: não ganhei nada, perdi a linha e ainda paguei o maior mico frente aos olhares indignados de um grupo de senhorinhas ali ao lado, que por detrás dos óculos bifocais ostentavam ares de exímias experts nos meandros daquelas cantadas. Se alguma vez chegou a existir, teve vida bem curta minha vocação para viciado em jogatina...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de julho de 2013)