sexta-feira, 28 de março de 2014

No piloto automático

Até admito que possa ser uma grande invenção da humanidade, mas vocês vão me desculpar, eu não confio no piloto automático. Basta ver o que ele anda aprontando por aí afora, a começar pelas nossas vidinhas cotidianescas (“cotidianescas” inventei agora e quero royalties pelo uso).
Noite dessas, por exemplo. Cheguei em casa, vindo do escritório (meu escritório fica no quarto ao lado, junto com as estantes dos livros, mas é onde trabalho e quem é que disse que eu tinha de dar satisfação?), tirei os sapatos, calcei as pantufas (sim, porque trabalho em casa, mas sempre de sapatos, nada de chinelinhas flanando de um lado para o outro em horário de expediente) e decidi que, para o relax ser completo, cairia bem, naquela hora, uma tigela com o doce de pêssego em calda produzido por minha sogra. A compota estava ali na geladeira e lá fui eu: lotei a tigelinha com nacos saborosos de pêssego cobertos por aquela calda grossa, doce, cremosa, que logo estaria banhando de sabor minhas papilas, as tais das gustativas, de que gosto tanto.
Mas foi terminar de lotar a tigelinha que uma lembrança me assaltou a mente e, antes de me botar a comer, corri para o escritório para anotar na agenda uma tarefa profissional que teria de realizar no dia seguinte. Vai que esquecesse! Pronto, anotação feita, estava apto a retornar à sala para fazer companhia à esposa, ao sofá e à televisão, saboreando meus pêssegos. Só que... cadê os pêssegos?
E quem disse que eu encontrava a tigela farta de pêssegos em calda da sogra que eu recém havia servido, antes da interrupção da lembrança da dita tarefa profissional? Onde é que eu largara a tralha? Refiz o trajeto da geladeira até a escrivaninha, vasculhei as estantes do escritório, voltei à cozinha, abri a geladeira, revirei o sofá, ergui almofadas, mandei a esposa parar de rir e sair um pouco para o lado e nada, nada, nada da tigelinha de pêssego em calda. E não tinha mais nem gato em casa para levar a culpa.
Bom, é claro que, ao fim da celeuma, a tigelinha reapareceu espiando por detrás do balcão da cozinha, sem sair do lugar onde eu a havia deixado no momento do apagão causado pela lembrança (pode isso?) para, em pleno piloto automático, ir anotar a tarefa na agenda. Não gosto de navegar em piloto automático porque sempre dá nisso: perde-se tigelinha com pêssego em calda, cruzam-se sinais vermelhos, fala-se o que não devia, defende-se o indefensável... e, vem cá... cadê a crônica do Pioneiro que eu havia escrito agora?
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de março de 2014)

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