quarta-feira, 26 de março de 2014

O recado da colherinha

Sou adepto da teoria de que não existe tragédia não anunciada. Não existe mal súbito. Existe, sim, nosso eventual desconhecimento ou ignorância dos fatores que desde há muito estavam ali, na camufla, gestando a futura tragédia. Bastava termos tido competência ou vontade para reconhecer ou detectar esses sinais que poderíamos, sim, evitar a consumação da maioria das tragédias (exceto, claro, aquelas derivadas da vontade repentina de uma força indomável superior, que bem o digam os habitantes de Sodoma e Gomorra e os que defendiam as muralhas de Jericó).
Mas nem sempre o fazemos. Muitas vezes somos assolados pela nossa proverbial inércia, pela nossa preguiça, pela nossa tendência ancestral de deixarmos tudo como está para ver o que acontece, embasada na teoria (equivocada) de que “pior do que está não fica”, para só então, depois de consumada a catástrofe, nos darmos por conta de que podia ficar pior, sim, e como! Os reflexos dessa postura leviana frente ao andamento da vida estão por todas as partes.
Comecemos pela louça suja do café da manhã, por exemplo. Aquele pequeno e aparentemente inofensivo montículo composto por um par de xícaras (em se tratando de apenas um casal), um par de pratos, duas colheres, duas facas e o canivete todo melado usado para abrir a porcaria do pote de geleia que não tinha jeito de desrosquear por bem, poderiam, perfeitamente, permanecer ali na pia esperando por hora mais propícia ao banho. Só que, em agindo assim, não vai demorar muito para esse montinho se avolumar com o passar das refeições e o acumular da sujança, até se transformar em uma assustadora montanha de gordura incrustada que passa a avançar da pia rumo ao fogão e faz todos desejarem fugir de casa.
Assim se dá com aquelas doenças oriundas do descuido direto para com nossa saúde, para com nossa alimentação, para com nossos hábitos, para com nossa assepsia. Assim se dá com as tragédias do trânsito e as da violência urbana. Assim se dá com a catástrofe financeira de empresas e com a incapacidade gerencial de um município, de um estado, de um país. Todas elas tragédias perfeitamente anunciadas a partir de uma série de avisos, e evitáveis a partir da adoção de posturas lúcidas e proativas.

Mas, sempre que a opção for permanecer afundado no sofá assistindo à tevê ao invés de lavar logo a louça, a consequência será exatamente aquela que a queda da colherinha de cima do topo da pilha está anunciando. Só não entende o recado quem não quer.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de março de 2014)

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