quarta-feira, 26 de março de 2014

Pata de elefante

“Tudo que é sólido desmancha no ar” é uma das mais populares assertivas integrantes do “Manifesto do Partido Comunista”, o texto publicado pela dupla de filósofos Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848, que serviu de inspiração teórica para as revoluções comunistas que chacoalharam o planeta no século passado. Com o passar do tempo, a frase acabou se tornando uma ampla metáfora para indicar que, mesmo as coisas mais consolidadas pelo uso, pela tradição, pelos costumes, pela inércia, pela força ou pelo hábito, podem, sim, ser mudadas.
Pois algo desmanchou-se no ar em uma noite da semana passada quando eu e minha esposa decidimos sair para jantar. Escolhemos a dedo o restaurante, que já conhecíamos, devido ao ambiente agradável e à cozinha saborosa e elegante. Quando chegamos, cedo da noite, éramos somente nós os clientes da casa. Fizemos o pedido, famintos, e esperamos. Esperamos. Esperamos. Trocamos de assunto. Nos mexemos nas cadeiras. Olhamos no relógio. Olhamos um ao outro. E esperamos e esperamos.
Um cliente assíduo de restaurantes desenvolve uma boa noção quanto ao que é um tempo de espera aceitável por um prato. Leva-se em consideração a movimentação da casa (no caso, vazia) e a complexidade da iguaria solicitada (no caso, dois simples filés de picanha bem passados acompanhados por purê de mandioquinha). Há de se imaginar que não mais do que 20 minutos separariam o momento do pedido da aterrissagem dos pratos. Lento engano. Demorou 50 inimagináveis minutos. Foram buscar a cozinheira em casa? Foram colher a mandioquinha? Foram carnear o boi?
Não bastasse isso, ficamos estupefatos com a mudança de conceito naquele estabelecimento em relação ao que deveria ser considerado um medalhão de filé. Não vieram medalhões, mas sim patacões de elefante mal cortados, grossos, preparados de acordo com o desleixo com que tudo ali estava sendo tratado. A solidez do conceito que tínhamos pelo local esfacelou-se no ar junto com as primeiras (e únicas) garfadas. Ah, a conta, claro, foi cobrada sem nenhum desleixo.
Não cabe ao cliente ensinar ao restaurante como se prepara um prato. Não cabe ao cliente ensinar o ofício a quem se apresenta no mercado como profissional desse ofício. Cabe, sim, ao cliente, ir embora para nunca mais voltar, inspirando a que tomem a mesma atitude as multidões de clientes maltratados em todos os ramos de atividades, deixando que se desmanchem no ar estabelecimentos e profissionais que passam a prezar pelo desleixo nesse país da Copa.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de março de 2014)

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