sexta-feira, 20 de junho de 2014

O cavalo do rei

“Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo”! Foi da imaginação genial de William Shakespeare que saíram essas poderosas frases, atribuídas ao Rei Ricardo III na peça de mesmo nome, escrita mais de 400 anos atrás.
Rei Ricardo III, grande tirano, está no campo de batalha, já no final da peça, e sabemos que ele vai morrer. Não vemos as cenas explícitas de combate (Shakespeare nos poupa do explicitismo e dos efeitos especiais que são a tônica das criações cênicas cinematográficas da modernidade), mas temos noção de sua selvageria devido aos efeitos delas, como o estado lastimável do Rei e seu desespero ao detectar que seu cavalo foi abatido e ele precisa de outro animal para se mandar dali e preservar sua vida.
O Rei implora aos ventos por um cavalo. Implora a quem quer que possa ouvi-lo e providenciar-lhe o único meio de fuga capaz de lhe evitar o destino trágico e certo (e predito em sonhos pelos espectros das vítimas de suas crueldades). Que alguém lhe faça surgir um cavalo! Ele está disposto a dar seu reino inteiro em troca de apenas um cavalo que lhe permita garantir a posse de seu bem mais precioso: a própria vida. Logo ele, que desvalorizou as vidas de quem quer que se interpusesse em seu caminho ao longo da peça. Só que agora é tarde, Rei Ricardo, afinal, você não tem mais poder de barganha, pois seu reino lhe escorre das mãos, e nada há para trocar.
Ricardo clama pelo cavalo, mas é abatido logo depois por espadas que redimem a ordem e a justiça ao final da peça shakespeariana. De nada adiantaram o desespero e a frase de efeito. Lembro do Rei Ricardo quase todos os dias pela manhã, quando sento-me aqui para escrever estas linhas diárias. “Uma crônica. Uma crônica. Meu reino por uma crônica!”, vou eu bradando em silêncio pelos cômodos do apartamento, na esperança de que as musas da inspiração se condoam de mim e me soprem um tema aprazível. Às vezes, funciona. Outras vezes, não. O problema é que nenhuma das musas acredita no meu poder de barganha, afinal, elas são antigas e já viram esse filme antes: Ricardo não tinha mais reino nenhum a ofertar em troca do cavalo. E eu, que reino haverei de ter para cambiar por uma crônica?
As musas sabem que meu desespero não é para tanto, nem chega aos pés daquele que acossava Rei Ricardo, o descavalado. Tenho a sorte de, nesses momentos de crise inspiratorial, poder lançar mão a uma metáfora presenteada por Shakespeare e resolver meu pequeno draminha. Sorte a minha não ser personagem shakespeariano. E de não precisar comprometer a entrega de meu reino, afinal, as prestações são a perder de vista...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de junho de 2014)

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