quarta-feira, 29 de julho de 2015

Apenas ser, já era

O mundo está cada vez mais especializado, em todos os aspectos, em tudo o que nos cerca. É uma tendência, a coisa segue por esse rumo, não há como fugir. É preciso aceitar e aprender a conviver com as novas regras, dançar conforme a música para não dançar no sentido figurado, que é o de sobrar, ficar deslocado, fora de moda, estranho no ninho, penetra na festa.
A era dos generalistas, dos amadores, dos chutadores e dos diletantes está se acomodando no passado. É uma era que já era. Não basta mais conquistar uma vaga na universidade e fazer a graduação, para orgulho da família. Não. É preciso especializar-se. É preciso fazer mestrado, doutorado, pós-doutorado, para realmente começar a fazer a diferença. Não basta, tampouco, ser criança nesses dias de hoje. É preciso ser criança que vai à escola e depois faz aula de inglês, de natação, de judô, de computação e assim por diante.
Também não basta mais ser velho. Até porque, hoje em dia, ninguém mais fica velho, mas, sim, idoso. Terceira idade, não é mesmo? Pois também não dá mais para estacionar na tranquilidade aposentada da terceira idade. É preciso cursar cursos especiais para a terceira idade, participar de excursões, ir a bailes, esbanjar saúde, transformar-se em exemplo a ser seguido. É preciso ser especialista em tudo hoje em dia. Especialista em ser criança, em ser profissional, em ser idoso, em tudo.

Até em nossos passatempos precisamos nos especializar, senão, comemos poeira. Eu, por exemplo, até uns anos atrás andava pilotando o fogão e mexendo nas panelas, depois de ter feito algumas oficinas culinárias, me metendo a produzir refeições gourmet em casa, a título de hobby. Agora, com essa onda de reality shows gastronômicos na televisão, passei a estar rodeado de master chefs por todos os lados, e sou bombardeado pelo croque monsieur preparado por minha mãe, pelo rosbife ao molho de mostrada feito pela esposa, pela rapadura de amendoim com chocolate meio-amargo do compadre, pela lasanha cinco queijos da sogra, pelas maioneses especiais das cunhadas, pelos filés no disco ao molho vermelho do cunhado, pelo fricassê de frango da irmã, pela costela com tempero secreto do sogro... Ninguém mais bebe vinho, todos degustam varietais. E eu, eu já era. Como tenho vocação para amadorismo, só me resta voltar ao feijão com arroz, ovo frito e bife...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de julho de 2015)

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