quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O engano do Soiza

Acredito que eu deveria ter por volta de uns dez anos de idade quando meu pai chegou em casa uma certa manhã carregando aquela grande caixa de papelão e a depositou sobre a mesa da varanda. Fui ver o que era e deparei com um punhado de pintinhos de um dia acotovelados ali dentro, formando uma massa amarela compacta de pios, penugens e olhares aterrados. Quis saber para que aquilo e meu pai me explicou que os havia comprado a fim de leva-los à fazenda que possuía no interior de São Borja, onde esperava-se que se transformassem logo em frangos e, a seguir, em galinhas poedeiras.
“Com sorte, haverá um ou outro galo no meio desse bando”, disse ele. Fiquei impressionado com o fato de ser possível “comprar vida”, expressão que utilizei na época. Fascinado com a novidade, passei o restante da manhã em volta da caixa, observando os pequenos serezinhos que recém haviam vindo ao mundo e que ignoravam, temerosos, o destino que lhes era traçado. Indefesos, aconchegavam os corpinhos minúsculos e frágeis uns aos outros, na busca instintiva por proteção, segurança, amparo. Eu, enorme para eles, parecia representar a encarnação de um deus poderoso capaz de, em um gesto, ceifar-lhes a vida a meu bel prazer, a qualquer instante. A ideia causou-me mal-estar e ampliou a empatia que eu ia nutrindo por aquelas dezenas de bichinhos.
Um deles, em especial, me chamou a atenção. Parecia ser alguns milímetros mais alto do que os demais e se destacava na multidão de pintos não só pela altura, mas também pelo comportamento: pouco se mexia e ficava estático em um canto da caixa, não procurando os companheiros e dando a impressão de ser também rechaçado por eles. O dó que senti da criatura foi tamanho que pedi a meu pai para ficar com ele em casa. Ele concordou e foi assim que o bicho se transformou em pinto de estimação. Como era maior do que os outros, tive a certeza de que se tratava de um galo, e batizei-o de Soiza (não me perguntem a razão do nome).

Em poucas semanas, já apartado dos seus irmãos que seguiram para São Borja, o grande e tímido Soiza virou frango e, alimentado com ração e carinho, não demorou a se transformar em uma bela e ruiva... galinha! Pois é, aprendi ali, na prática, que as aparências podem enganar. Meu galo era galinha, mas continuei gostado dele (dela) e o nome Soiza permaneceu até o dia em que desapareceu do pátio em uma das visitas da minha avó, expert em panelões maravilhosos de galinhada. Afinal, Soiza, há um destino a ser cumprido...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de dezembro de 2013)

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