terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Visão de carona

“Borracharia dia e noite”, dizia a placa à beira da estrada. “O que será que fazem ali? Enchem a cara de cerveja do raiar do sol até o avanço da madrugada, se emborrachando ininterruptamente?”, me questionava eu, em silêncio, sentado no banco do carona. Pensamentos assim (e alguns outros bem mais filosóficos, profundos e humanos, garanto) me visitam a mente quando tenho a (rara) oportunidade de passear no banco do carona. Como é bom estar no banco do carona.
Desobrigado a atentar para as armadilhas do trânsito frenético, a conduzir o veículo pelas quebradas corretas que desembocarão no destino almejado e a convergir todos os sentidos e esforços na materialização de um trajeto seguro, a chance de poder aninhar-se no banco do carona representa para mim um momento inegociável de relax mental capaz de proporcionar uma recarga de bateria psíquica única e inigualável. Se confio no (na) motorista, largo a alma a flanar pelas paisagens urbanas ou rurais que vão desenrolando seus flagrantes de humanidades à medida em que são tocadas fugazmente pelo crivo de meu olhar atento e descansado.
A moça que passeia com o cãozinho pela calçada; o casal maduro de abrigo, boné e óculos escuros, a fazer sua caminhada diária; o velhinho que não se desapega do hábito de levar a cadeira para a varanda no fim de tarde para testemunhar a vida sorvendo chimarrões silenciosos; a criança que fez arte e sai correndo marota porta afora, deixando para dentro da casa os gritos maternos; a silhueta do cavalo que pasta solitário no alto da campina; a casa de joão-de-barro que se equilibra no alto do poste de luz; a casinha centenária encolhida entre dois prédios no trajeto diário e que sempre me fugiu às vistas de motorista; as placas com dizeres esdrúxulos que são engraçadas justamente por terem sido elaboradas sem a intenção de provocarem graça alguma, como a “borracharia dia e noite” ou a “comida por a quilo”.

O escritor francês Marcel Proust, no início do século passado, temia, com a popularização dos automóveis, que a velocidade das viagens dizimasse nas pessoas a capacidade de observarem as paisagens do mundo com a mansidão necessária. Não proponho a volta das charretes, mas talvez eu devesse viajar mais de ônibus.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de dezembro de 2013)

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