segunda-feira, 31 de agosto de 2015

À sombra do vulcão

A tecnologia evolui com uma rapidez insana, desde que o homem aprendeu a friccionar dois gravetos e deles extrair faíscas com as quais produziu a primeira fogueira da pré-história da humanidade. Chamava-se Ugh, parece, o grande inventor. Ou Agh, conforme outras correntes científicas, mas talvez tudo não passe de leves diferenças de pronúncia, já que naquela época, apesar do fogo, ainda não fora inventado o bloquinho para anotações.
Mas certamente não foi fácil passar o conhecimento da nova técnica adiante. Não há registros, claro, mas é possível imaginar quantos outros humanos ao redor daquele vulcão queimaram os dedos tentando repetir a revolucionária experiência de Ugh (para outros, Agh). Esperto mesmo foi Igha, esposa da Ugh (Agh), que afanou um gravetinho incandescente da fogueira original e com ele gerou outro fogo, mais adiante, dentro da caverna, provando desde então a superioridade feminina sobre a masculina no quesito do uso do cérebro.
Mas, independentemente do invento em questão, o fato é que transmitir conhecimento adiante não é uma tarefa simples. Que o diga aquele meu amigo conhecido como Argentino, que há tempos não aparecia citado aqui nestas sempre mal-digitadas entrelinhas. Argentino tem um tio que mora no interior da Província de Misiones, fronteiriça à região noroeste do Rio Grande do Sul, que não se desfaz de maneira nenhuma de seu antigo computador. A máquina tem mais de 15 anos, está obsoleta, o visor ainda é verde, a CPU parece uma Torre de Babel de tão grande, mas ele não larga o trombolho.

Não só não larga, como carrega a tralha consigo quando sai em viagem para visitar o sobrinho aqui em Caxias do Sul, ou quando decide veranear no litoral gaúcho em Torres ou Capão da Canoa. Leva tudo junto, ocupando todo o espaço do banco traseiro de seu Peugeot amarelo, ano 1977. Fixação platônica pela máquina? Amor à tecnologia vintage? Sovinice militante? Não, nada disso. É porque, conforme ele mesmo explica ao meu amigo Argentino, o e-mail dele está ali dentro daquela máquina, e ele não pode viajar sem conferir os e-mails. Ele não consegue se imaginar abrindo seu correio eletrônico em nenhuma outra máquina, senão a sua. Como, senhora? Já contei isso antes? Ah, então desculpe, esqueci de atualizar minha página de temas para crônica. E se non é vero, ao menos, dessa vez, foi melhor trovato.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de agosto de 2015)

sábado, 29 de agosto de 2015

Não desista do sonho

“Nunca desista de seu sonho: se terminou em uma padaria, procure em outra”. Apesar de muito boa, a frase não é minha. Opa, isso soou prepotente. O que eu queria dizer era: a frase, apesar de boa, não é minha. Não, espera, deu no mesmo. Continua soando estranho. Fica parecendo que o leitor imaginaria poder ser minha a frase, de tão boa que ela é, como se fosse natural este mundano cronista que vos escreve ser capaz de parir frases luminosas como essa. Mas assim, bem o sabemos, não se dá. Tentemos, então, de novo: a frase é boa, mas, infelizmente, não é minha. Ou melhor: a frase é boa, mas não é minha. Isso. Era isso o que eu queria dizer.
Queria mesmo era dizer a frase boa, mas faz-se imperioso que eu revele sua devida autoria. Ela pertence a Apparício Torelly (1895 – 1971), o famoso jornalista e humorista gaúcho que ficou conhecido em todo o país pelo apelido autoimpingido de Barão de Itararé. Essa, entre muitas outras, integra o inabarcável cabedal de frases de efeito criadas pelo genioso e surpreendente escritor, ao longo de sua longa e divertida carreira na imprensa nacional. O humor com o qual tecia as sentenças que o caracterizavam servia de conduto a profundas verdades, como, aliás, sói acontecer com todos aqueles que se valem da leveza do humor para abordar de escanteio as profundezas da alma. Como o Barão de Itararé. Como Apparício Torelly. Como Stanislaw Ponte Preta, como Luis Fernando Veríssimo, como João Bergman (o Joatbê), como Jimmy Rodrigues, como Ítalo Calvino, como Fabrício Carpinejar e tantos outros.
A frase lapidar do Barão de Itararé nos permitiria discorrer aqui sobre a relação metafórica entre os sonhos de padaria, que alimentam o corpo, e os sonhos acalentados pelos anseios das almas das gentes, que preenchem vidas. Poderíamos, mas não podemos, porque a frase não nos pertence, e o cronista que vos escreve, apesar de mundano, não pretende incorrer na falta (crime de lesa-literatura) configurada pelo roubo das ideias e frases alheias, sendo que Apparício Torelly não é nenhum alheio, ressalte-se.

Só o que posso dizer, frente a isso tudo, é que eu, não sendo um frasista como o Barão, contento-me em me fazer mero visconde e a perseguir sonhos pelas confeitarias e padarias daqui do bairro, mesmo. Às vezes, encontro algum consonante à minha fome.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de agosto de 2015)

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Por que por quê?

Meu avô paterno era fã de Apparício Torelly, o Barão de Itararé (jornalista e humorista gaúcho, 1895 -1971) e de João Bergman, o Jotabê (cronista gaúcho, 1922 -1960), mas tinha muito medo do Leonel Brizola (político gaúcho que foi governador do Rio Grande do Sul na década de 1960 e do Rio de Janeiro na década de 1980, nascido em 1922 e falecido em 2004 – se continuar desse jeito, daqui a pouco isso aqui deixa de ser crônica para se transformar em enciclopédia... talvez valha a pena, vai que enciclopedista ganhe mais do que cronista... preciso investigar). 
Dele, herdei o gosto por apreciar o humor inteligente dos dois escritores, mas felizmente não herdei os temores relativos ao político histórico, e é na sequência que explico o porquê (“o porquê”, tudo junto e com circunflexo, como tem de ser, viram? Só não me perguntem por que, porque daí isso vai se transformar em gramática e nos distanciaremos da crônica, sem que ninguém saiba por quê. Mas vai que gramático ganhe mais do que cronista... preciso investigar).
Pois passei boa parte da infância em Ijuí, lá na década de 1970, ouvindo meu avô sempre manifestar temores ao se referir, em suas conversas com “gente grande”, a Leonel Brizola. E eu, do alto da minha ingenuidade infantil, não entendia a razão daquilo. Mas, observador que era já desde as fraldas, fui crescendo e detectando ao redor, entre alguns adultos que orbitavam nossas relações, a existência de outros tementes a Brizola. E eu não entendia o porquê (certinho, de novo).
Mas daí, cresci, decidi ser jornalista e comecei a incrementar meu uso do “por quê?”, separado e com circunflexo, no fim da frase. “Por que você tem medo do Brizola?”, perguntava eu, separado e sem acento, pois no início da frase (e agora virou aula de Português, pois vai que professor ganhe mais do que... não, pior é que acho que não...). E aí, ninguém sabia responder o porquê. O tal do medo do Brizola não tinha explicação. Era apenas a repetição desinformada, o eco impensado de um senso comum, que ninguém sabia justificar.

Aquilo, para mim, não servia e segue não servindo. Preciso estar convicto, pleno de informações e de argumentos, para justificar meus temores ou minhas crenças. Afinal, cronistas, jornalistas, gramáticos, enciclopedistas, professores e cidadãos de todos os tipos não podem ser maria-vai-com-as-outras. E vocês sabem muito bem por quê.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de agosto de 2015)marcos

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O caminho e a pedra

Não, não tinha. Não tinha pedra nenhuma no meio do caminho, e no meio do caminho não tinha uma pedra. Nunca teve. Não tinha uma pedra, nem duas, nem pedregulho, nada. Chega uma hora em que se faz necessário desmistificar as coisas e, lamento revelar, mas o caminho estava livre e desimpedido, como sempre estivera. Quem botou aquela pedra lá, meus senhores, minhas senhoras, fomos nós, e desprovidos de qualquer motivação poética. Pronto, falei.
A verdade é que fizemos aquilo movidos por um daqueles típicos arroubos juvenis inexplicáveis que acometem as gentes quando elas são adolescentes e sentem vontade de fazer uma travessura da qual possam rir mais tarde, narrando aos amigos, para ver se ganham pontos na escala de popularidade entre os colegas e, principalmente, entre as colegas, pois é imperioso pavonear-se de atitudes sem sentido para se fazer notar, como bem sabe quem já foi (ou ainda é) adolescente alguma vez na vida. E nós não éramos diferentes. Quando nos demos por conta, já estava feito, e o caminho, de uma hora para a outra, passou a ter uma pedra, bem no meio.
Éramos três, os patet... digo, os amigos envolvidos na trama que, a bem da verdade, em nada foi tramada, mas, sim, deu-se de supetão. Um de nós já era maior de idade e tinha um Jipe cor salmão, muito velho, com o qual passeávamos pelas ruas emparalelepipedadas de Ijuí nas horas vagas das aulas. O dono do Jipe lá na frente e nós dois (eu e o outro amigo) na parte traseira, saltitando com os solavancos. E, dentro, havia uma grande pedra, que era usada a título de calço de roda para estacionamento, uma vez que o veículo andava desprovido de freio-de-mão. Ao subirmos uma ladeira, olhamo-nos um para o outro e tivemos a mesma ideia ao mesmo tempo: abrimos a porta traseira e pimba: arremessamos a pedra fora, que rolou por alguns metros e parou, no meio do caminho, pedra que era.

Ato totalmente sem sentido, mas que rendeu e rende até hoje boas risadas. Afinal de contas, decidimos que, naquele momento, havíamos materializado em atos a essência de uma grande poesia. Nem que fosse a réstia de poesia que talvez resida em uma pequena traquinagem de adolescente. A partir dali, fomos aprendendo a desviar das pedras que se interpunham em nossos caminhos. Como sempre digo, tudo pode ser metáfora. Até a pedra no meio do caminho de um poeta e de um bando de adolescentes.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de agosto de 2015)

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Cada um na sua ilha

Vamos lá: já que você se botou a ler isto aqui, não importa se avisada ou desavisadamente, agora está sob meu poder, e vai ter de vir comigo até o ponto final. Se quiser, ainda há tempo de desistir e virar a página ou clicar em outra tela, mas agora foi, capturei, venha. Imagine-se em uma ilha. Não importa o tamanho da ilha, valem as de todos os tipos: grandes ou pequenas, habitadas ou desertas, com coqueiros e macaquinhos ou urbanizadas. Uma ilha, ponto. Você está lá, e está cercado de água por todos os lados. Seus vizinhos são as ondas, os tubarões, as algas, os navios que cruzam ao longe, o horizonte que circunda toda a área e faz você ficar desconfiando de que a Terra pode mesmo ser redonda. Uma ilha.
Você nasceu nela ou foi parar lá de alguma maneira, tanto faz, isso você mesmo pode decidir (há certas liberdades que concedo às minhas momentâneas presas literárias, como o estimado leitor e a querida leitora). E vamos ao ponto: você está lá, na ilha, e o que você faz dessa situação? Qual a sua atitude? Vejamos as opções. Se te chamares (vistes, alteramos a forma de tratamento para o “tu”, assim, no mais; coisas de liberdade narrativa de que nós, cronistas mundanos, costumamos nos apropriar) – se te chamares Ernesto ou Camilo, podes decidir fazer uma revolução; se fores um pirata do Caribe, podes enterrar nela um tesouro; se a tua ilha é no Havaí, podes inventar um novo estilo de surfar e alcançar a fama internacional; se fores moça, descolada e imaginativa, podes criar um novo estilo de biquíni; se fores o Tom Hanks, podes aprofundar os laços de amizade com bolas de vôlei da marca Wilson; se te chamares Robinson, podes zanzar de um lado a outro na ilha durante anos e anos e anotar tudo o que não lhe acontece, na expectativa de te tornares escritor famoso; se estiveres em uma ilha japonesa, podes criar uma nova receita de sushi; se aportares na Ilha do Diabo, podes gestar um plano e protagonizar uma fuga espetacular que depois vai virar filme; se fores Morel, na ilha te apaixonarás; se fores Moreau, na ilha criarás horrores.

As opções, como os amigos leitores e as amigas leitoras viram (abandonamos “tu” e “vós”, assim, sem mais), são infinitas. Cabe a você decidir que destino dar à sua estada em sua ilha. Morrer de tédio é opção só para os de alma pequena.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de agosto de 2015)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Da razão das metáforas

Tenho, cá para mim, que uma das maiores invenções da humanidade, derivada do aprimoramento e do refinamento do espírito humano, é a metáfora. Sim, eu sei, existem outras invenções práticas também muito importantes que poderiam ser elencadas aqui, neste espaço privilegiado, como a aspirina, que alivia dores da cabeça ao cotovelo; a anestesia, que poupa dentistas de terem de correr quadras e quadras atrás de pacientes pusilânimes; o controle-remoto da tevê, que exercita a paciência de nossos cônjuges; a polenta, que pode ser plantada em qualquer tipo de solo e requer manejo mínimo para vingar, florescer forte e viçosa e aliviar a fome intermitente que assola os habitantes de regiões como essa nossa; o liquidificador, o lençol térmico, o leite condensado, o radiorrelógio, o corretor automático de testo, digo, de texto (estava esquecendo de aplicar o dito-cujo) e tantas outras que mereceriam, sim, uma longa, inspirada e laudatória crônica, mas hoje falaremos de metáforas.
Falaremos de metáforas porque elas vão representar aqui, nestas mal-digitadas linhas, o valor das invenções intangíveis, aquelas criações da mente humana que operam dentro dos limites ilimitados do espírito humano, diferentemente das invenções tangíveis e práticas que revolucionam o ato físico de viver, como a luz elétrica, o cotonete, o automóvel e as lombadas eletrônicas, só para citar algumas. As metáforas têm o poder e a função de ampliar, sem quaisquer amarras, a capacidade de compreensão humana da existência, de tudo aquilo que envolve, cerca e define o ato de existir, de observar a existência e de protagonizá-la. As metáforas conferem asas metafóricas (vejam, um pleonasmo!), libertam os grilhões que afundam nossos pés no cimento urbano, subjugam as âncoras que teimam em afundar na aridez da realidade e permitem o rompimento dos limites da significação da vida.
As metáforas são as parteiras das parábolas, das fábulas, dos mitos, dos ditados populares, das piadas, das comparações, das entrelinhas, dos subtextos, dos subentendidos, do humor, da ironia, das artes e da criatividade. As metáforas nos permitem cheirar com os olhos, escutar com os dedos, olhar com a alma, sorrir com os ombros, tocar com os ouvidos, entender com o coração, falar com o silêncio, dizer desdizendo, subentender o não-dito e inebriar-se de estética.

Só não me perguntem o que eu quis dizer com isso tudo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de agosto de 2015)

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Serviços departamentalizados

A onda da departamentalização dos serviços chegou também lá em casa, e não é de hoje. Lá (aqui, no caso), está estabelecida, por meio de acordo tácito (tácito hoje, porque o tempo tratou de cristalizar, mas, no início, houve queda-de-braço, mesmo), a departamentalização dos serviços domésticos, cujas responsabilidades são divididas entre todas as duas pessoas que residem na unidade familiar composta por mim e pela senhora minha esposa. E não tem conversa, nem choro, muito menos ranger de dentes e “não quero”. É isso, e deu.
Problema é que eu não gosto da maioria das tarefas que cabem a mim. Não gosto, por exemplo, de lavar a louça. Não gosto de lavar e nem de secar, porque acho que o processo de secagem pode ser obtido de forma natural, com as louças todas empiramidadas esquisitamente sobre o escorredor de metal que vai desaparecendo paulatinamente a cada novo copo empilhado sobre panela em cima dele. Pronto, basta equilibrar ali tudo e esperar algumas horas (horas a mais no inverno e em dias úmidos, horas a menos no verão e em dias secos), que a mágica da secagem automática por meio de contato direto com o ar terá se dado. Mas nem sempre esse argumento científico convence a senhora minha esposa, que me olha atravessado de lá da outra ponta do corredor, vassoura na mão, ameaçando conferir ao objeto alguma utilidade a mais do que somente varrer o pó da casa, e corro a secar rapidinho copo por copo, colherinha por colherinha, antes que... vocês sabem...
Também não gosto de recolher a roupa seca do varal ao final do dia, antes que o sol se ponha. Nem de recolher a seca e nem de recolher a que ainda permaneceu úmida, devido a esses nossos dias repletos de surpresas climáticas que fazem a festa dos climatologistas, que não morrem de tédio na Serra jamais. Não gosto. Não gosto, mas faço, porque também não gosto das partes que tocam a ela, à senhora minha esposa, como varrer a casa, colocar a roupa na máquina de lavar, passar a roupa (o pesado mesmo fica para a faxineira que vem em dias marcados, antes que fiquem pensando que ninguém tira o pó e nem limpa os banheiros desta casa).

Mas não gosto. Faço e não gosto. Não gosto, mas faço. Aventei até em sugerir passarmos a usar somente louça e roupas descartáveis, mas, a jugar pela forma como ela empunhou a vassoura, retirei logo a proposta. Vai que decida descartar o marido...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de agosto de 2015)

sábado, 22 de agosto de 2015

O suor da competência

Você vai a um espetáculo de dança e sai de lá plenamente encantado com a leveza dos bailarinos, com a sincronia dos gestos em relação à música. Você vai a uma peça de teatro e sai de lá apaixonado pela atuação dos atores, pelo ritmo das cenas conduzidas pelo diretor, pela qualidade dos cenários. Você vai a uma galeria de arte e sai de lá hipnotizado pelo toque de gênio do artista, que retrata o mundo e as sensações com formas e cores nas telas. Você lê um bom livro e aplaude o escritor; escuta uma música magistral e endeusa o músico e o letrista; saboreia um bom vinho e tece loas ao enólogo; desfruta um manjar dos deuses e quer abraçar o chef.
Você é generoso em elogios sempre que se vê bem servido em termos de qualidade absoluta, em todas as áreas de atuação humana. E isso é muito bacana de sua parte. Mas, como nem tudo é perfeito, você comete um erro de avaliação, quase sempre, ao julgar que é tão fácil fazer essas coisas todas, tão belas e perfeitas, que até você seria capaz de igualá-las. E é aí que mora o perigo. As aparências enganam, e isso é um dos atributos essenciais de tudo aquilo que é aparente. Tudo aquilo que soa perfeito aos nossos olhos, realizado pelos outros, parece estar sendo feito com extrema facilidade e, por isso, soa como passível de ser igualado. Ledo engano.
A perfeição dos gestos do artista, dos textos do escritor, da sonoridade da música, dos sabores dos pratos e de tudo o mais, que acaba soando tão simples, decorre de um grande e essencial segredo: o trabalho árduo, a dedicação e o supremo esforço. Só assim o artista e o especialista conseguem realizar com aparente facilidade aquilo que acaba soando belo e perfeito. Faça um teste. Vá a um restaurante de sua preferência e peça aquele maravilhoso filé ao molho madeira, que você tanto aprecia. Depois, vá para casa e, no dia seguinte, tente fazer em sua cozinha um prato igual. Será que vai conseguir? Você sabe as manhas para obter um filé suculento mas não cru, frito mas não sola-de-sapato, saboroso mas não salgado demais?

Em todas as atividades existem os truques e a perfeição só é alcançada depois de muito treino e suor. É por isso que o artista é artista e o público aplaude. Se não podemos ser artistas, que saibamos exercer com perfeição a arte de aplaudirmos quem de fato o é. Eis também aí uma arte.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de agosto de 2015)

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Na mira de Angelina

Não é de hoje que a homarada do planeta se coça de inveja do Brad Pitt, pelo fato de ele ter conquistado a Angelina Jolie, ela, que é considerada por muitos a mulher mais bela do mesmo planeta. Parece que o reverso da medalha é semelhante em essência, mostrando que a mulherada do planeta em questão também sentiria da Angelina Jolie uma inveja danada, daquelas que nem beijinho no ombro protege, pelo fato de ela ter conquistado o Bradão (para os íntimos), aquele “pedaço de homem”, e intensifico aqui a importância das aspas para que ninguém pense que fraquejo no meu posto bem posicionado entre a homarada apreciadora de Angelina, a Angie, para nós, os íntimos.
E, daí, é aquela coisa que o amigo leitor e a estimada leitora bem sabem: o casal dos sonhos se casa um com o outro, a mulher mais linda com o homem mais belo, riquíssimos, famosíssimos, poderosíssimos, lindos e cheirosos... Mas, epa... Parece que anda havendo ruído nessa sinfonia, uma desandada na maionese, um pinhão carunchado no meio da bocha, uma desafinada no solo de guitarra... A Angelina, ou melhor, a Angie, andou dizendo para a imprensa internacional (e a imprensa internacional, que não é confidente da Angelina, mas, sim, de todo o planeta, tratou de espalhar para todo o mundo) que ela está “por aqui” com a aparência do Bradão, e que não aguenta mais o visual desleixado que o maridaço tem cultivado na intimidade de seu lar, que respinga sustos por onde quer que ele desfile sua propalada (e agora questionada) beleza.
Ela vem reclamando das condições horrorosas da pele dele, porque ele não se cuida, né, amiga. Além disso, o ator deixou crescer uma enorme barba (“horrível”, segundo ela) para camuflar a pele também horrorosa. Ou seja, aos olhos da Angie, Brad está um caco, e a bela deu um ultimato: ele precisa urgentemente fazer alguma coisa para que ela volte a achá-lo atraente, senão... Brad já anda até considerando fazer uma cirurgia plástica, sob o risco de perder os olhares ronronantes de Angelina.
Viu só, Brad? Até pode ter sido fácil, para você, conquistar uma Angelina Jolie. Mas nem você está livre da necessidade imperiosa, imposta a todos nós, homens, de nos esforçarmos diariamente para mantermos nossas mulheres interessadas e renovarmos a conquista. Bem vindo ao clube dos mortais, Bradão. E dá licença, que preciso ir cortar o cabelo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de agosto de 2015)

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Gotas de ouro no pescoço

Leio na internet que o perfume mais caro do mundo custa o equivalente a R$ 770 mil. E, não, madame, não se trata de uma pipa de perfume por esse valor astronômico, não: a senhora terá de desembolsar essa fortuninha se desejar levar para a penteadeira de seu quarto apenas um frasquinho contendo 500 ml do produto. Quase um milhão de reais por meio litro de perfume, o que a senhora acha disso? Compraria?
Como é, madame? Sugere que eu, o cronista mundano mais desconhecido da Serra, encomende um exemplar e o presenteie à senhora? Não, madame, impossível. E não que a senhora não merecesse umedecer seu delineado pescoço, seu suave colo e os estratégicos pontos atrás das orelhas com a inebriante fragrância, nada disso, não me entenda mal. É que minhas posses não alcançam tamanhas galhardias. Ah, sim, se eu pudesse, certamente que o faria, madame, quanto a isso, pode ficar tranquila, sou um cavalheiro plenamente imbuído das melhores intenções. Disso, tenho o frasco cheio, se é que me permite a pequena brincadeira. Mas voltemos ao frasco. Quer dizer, ao foco.
O tal perfume, então, esse que custa setecentos e lá vai pedrada. Ele pertence à marca italiana Bulgari e foi batizado de “Ópera Prima”. A matéria nos informa também, madame, já que a senhora segue acompanhando aqui o desenrolar da coisa, a matéria nos informa que o tal perfume foi desenvolvido “com notas cítricas e florais leves”, sendo classificado como “diurno, remetendo à atmosfera mediterrânea, aos limões sicilianos e à Costa Amalfitana”. A senhora já pensou em sair flanando diurnamente pela aí com o pescoço a exalar notas florais leves e inebriando a atmosfera ao redor como se fosse um limão siciliano desgarrado pela Costa Amalfitana? Como, senhora? O que é a Costa Amalfitana? Também não sei, depois olhamos na enciclopédia. Ah, no Google, claro; “enciclopédia” foi força do hábito.

Mas, daí, senhora, olha só, tem mais. O vidrinho do perfume foi moldado com 250 quilates de citrino, 45 quilates de ametistas e vem com 25 quilates de diamantes encravados. E ainda é todo folheado a ouro. Ahhhh bomm! Agora, sim, estão explicados os R$ 770 mil! Como podemos ver, há casos em que a casca externa vale muito mais do que o conteúdo! A senhora viu só como são as coisas? Mais vale o vidrinho pendurado em seu pescoço a título de colar do que a fragrância em si, contida nele. Isso sim, pra mim, é desaforo!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de agosto de 2015)

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Chegaram os androides

A senhorita Luba Luft, renomada cantora lírica, visita uma exposição de quadros famosos em uma galeria de arte. O que ela busca ali é sentir emoções, tentar vivenciar aquilo que o contato com a estética das artes é capaz de proporcionar ao espírito. De repente, ela é abordada por Rick Deckart, o caçador de recompensas. Luba Luft é o alvo de Deckart. Se ele a caçar, obterá a recompensa.
 Mas, antes de qualquer coisa, Deckart acompanha Luba Luft em seu flanar pela galeria, e a observa namorar um livro que contém reproduções das telas do pintor norueguês Edvar Munch (1863-1944), a quem ela mais admira. Deckart decide comprar o livro e oferece-o de presente a Luba, que fica impressionada com o gesto. Um gesto que somente seres humanos são capazes de apresentar, uma vez que seres humanos sentem empatia pelas demais criaturas. Até mesmo por ela, Luba Luft, uma androide, que está sendo perseguida por Rick Deckart, o caçador de androides, conforme a narrativa do livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, escrito pelo norte-americano Philip K. Dick (1928-1982) e que inspirou o filme Blade Runner (1982).
A diferença, portanto, entre seres humanos e androides, reside na capacidade humana de ter empatia, esse sentimento que nos permite imaginar o que o outro está sentindo, de sofrermos e de nos alegrarmos com o sofrimento e com as alegrias dos nossos semelhantes. Em outras palavras, sabemos “nos colocar no lugar do outro”, capacidade que os androides da ficção-científica na literatura e no cinema não possuem. Androides não conseguem se colocar no lugar do outro e, portanto, agem de forma individualista, egoísta, robótica e desumanizada.

Eis aí, na ficção-científica, a chave para compreender o mundo real no qual estamos inseridos. Os androides existem e já estão entre nós. Eles são os motoristas que se colocam no trânsito como se estivessem sozinhos; são os corruptos que roubam o dinheiro público que serviria para a saúde e a educação da população; são as pessoas que descumprem as leis; as que furam as filas, as que abusam dos “jeitinhos”, as que só pensam em si mesmas. São as que torturam e matam, são as que agridem, são as que fazem bullying, são as que discriminam as diferenças, são as intolerantes, são as sacanas. Estamos cada vez mais cercados por androides. Tomara que a ausência de empatia não seja um mal contagioso. Precisamos urgentemente nos vacinar com doses cavalares de humanidade.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de agosto de 2015)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Talento centenário

A memória é uma ferramenta complexa, versátil e multifacetada, cuja função principal é ordenar um escopo de fatos e sensações únicas que, reunidos, configuram a essência de nossas personalidades individuais (até parece que o mundano cronista botou-se a ler livros de filosofia, da noite para o dia, mas não o fez, ao menos, não que ele lembre, o que comprova que a memória, mesmo sendo tudo aquilo ali em cima descrito, também pode ser falha). Recordações podem ser despertadas do leito em que repousam em sono profundo a partir de um odor, a partir da repetição de determinado gesto, a partir de uma melodia, de um déjà vu, do dobrar uma esquina, do mergulho em um álbum de fotografias, enfim, vários são os mecanismos capazes de evocar lembranças e torná-las de novo presentes e significativas em nossas vidas.
Eu sou dado a déjà vus e a súbitos ataques de lembranças, uma vez que minha alma é temperada com altas doses de nostalgia e fortes pitadas de melancolia. Não são poucas as vezes em que me vejo enredado em profundos resgates da memória, tanto pessoal quanto geral, e é por isso que me são tão significativas as datas, como já deve ter percebido aquela abnegada parcela de leitores que insistem em continuar lendo aquilo que aqui neste espaço venho deixando impresso. Dessa forma, fazendo jus ao que sou, não poderia deixar passar em branco a data de 18 de agosto de 2015, centenário de nascimento de Aldo Locatelli, o pintor italiano que veio deixar a marca de seu talento artístico em tantos monumentos religiosos e civis no Brasil, em especial no Rio Grande do Sul e na Caxias do Sul em que vivemos.

Eu não me lembro exatamente da primeira vez em que botei os pés dentro da Igreja de São Pelegrino, mas certamente foi em algum momento no segundo semestre de 1992, quando me mudei de mala e cuia para Caxias do Sul. O que lembro com vivacidade é da profunda emoção que me invadiu quando me deparei pela primeira vez com as telas de sua Via Sacra e com as pinturas que ele produziu em todo o ambiente da igreja. Emoção que segue viva a cada vez que retorno ao templo, uma vez que a arte legada por um artista como ele (que morreu em 1962) sobrevive à sua passagem e renova a chama da vida em todas as pessoas, a partir da contemplação do Belo. Um privilégio caxiense!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de agosto de 2015)

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

De marcha a ré

O principal problema que faz com que o trânsito nas cidades e nas estradas brasileiras seja um caos absoluto, cenário para estresses, acidentes, mortes e perigos diversos, vai muito além de questões estruturais. O principal problema não são os buracos e a má conservação das rodovias, ruas e estradas, apesar de esse quesito ser crucial e importante. O principal problema não é a infraestrutura antiquada e ineficiente. O principal problema não é a má sinalização e tampouco o excesso de veículos, a quase inexistência de meios de transporte alternativos (metrôs, trens, barcos, camelos...). Nada disso.
O principal problema são as gentes, as pessoas, os motoristas brasileiros que se sentam atrás dos volantes e ligam seus veículos prontos para a guerra. Armam os espíritos como se fossem enfrentar batalhas e, a partir dessa premissa, encaram todos os demais veículos ao redor como inimigos a serem destruídos, vencidos, batidos, subjugados, eliminados. O principal problema é a imaturidade psíquica do povo brasileiro como um todo, que transforma cada pseudocidadão pseudomotorista em um adolescente imaturo, impulsivo, inconsequente, agressivo, idiotizado, competitivo e inumano, a cada esquina, a cada cruzamento, a cada semáforo. Uma horda de bárbaros motorizados que fazem do trânsito uma selva canibalesca, burra e destrutiva. Em nome da pressa.
O problema é que nós, brasileirinhos, não conseguimos aceitar o trânsito que existe em nossas cidades e em nossas rodovias. Não conseguimos encarar de forma madura as deficiências estruturais que existem e que, por si só, tornam perigoso o transitar. A isso, agregamos nossa perigosa imaturidade, que prefere fazer de conta que o trânsito superpopulacionado simplesmente não deveria estar ali, daí a ansiedade, a pressa, a descortesia, a brucutice, a incivilidade. Falta percepção, falta lucidez, falta capacidade de lidar com o cenário de forma madura. Há problemas? Sim. Mas isso não nos credencia a sermos, cada um, um problema a mais.

Há muitos carros nas ruas. Muitos ônibus, muitos caminhões, motocicletas... Perceba, compreenda e aja de acordo. Deixe o nervosismo e a típica prepotência egoística subdesenvolvida e terceiro-mundista pra lá, e tente evocar um pingo de civilização dentro de você ao volante. O mundo ao seu redor pode ficar bem melhor a partir de seus próprios atos. Melhor para você mesmo, para começo de conversa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de agosto de 2015) 

sábado, 15 de agosto de 2015

O factoide do cronista

Andam dizendo que tentei criar um factoide. “Factoide”, para quem não sabe e nunca criou um, é o termo utilizado para designar qualquer espécie de pseudofato, fato fictício, fato inventado ou superlativizado, com o objetivo de lançar luzes sobre determinada pessoa, a fim de que ela ganhe espaço na mídia e veja subirem seus índices de popularidade, o que lhe pode render dividendos variados. Andam dizendo que usei desse artifício esses dias, para fins pessoais.
O recurso do factoide é muito usado por políticos que pretendem alavancar a carreira (vereador que quer ser deputado, prefeito que quer ser governador, presidente que quer dominar o Sistema Solar...); por atores que de repente se veem fora da órbita global e querem ser lembrados (pelo público e, especialmente, pelos diretores de televisão e pelos responsáveis pelas escalações de elenco); por subcelebridades em geral que querem arranjar patrocinadores para seus bumbuns siliconados e coxas com envergadura de pneu de patrola; e, agora, por cronistas diários mundanos como eu, que quer ampliar seus índices de leitura, partindo para a postagem de seus textos em certas redes sociais que não podem ser denominadas pelo seu nome real na imprensa sabe-se lá por que, mas que todo o mundo sabe quais são, e, então, utiliza golpes baixos como alterar a foto de seu perfil colocando uma imagem em que aparece na frente de um afamado ponto turístico mundial, dando a impressão de ser pessoa de altas posses que lhe permitem atravessar o Oceano Atlântico e ir refestelar-se em viagens internacionais enquanto o resto dos pobres leitores segue ralando por essas plagas esburacadas mesmo, amargando crise e disputando vaga para estacionar o carro no centro. Que pobreza de espírito, a do tal cronista mundano criador de factoides!

E até já circulam versões de que, ao observar com atenção a tal da foto do cronista, seria possível perceber que, na verdade, sua silhueta (esbelta, ao menos isso) foi recortada com recursos de photoshop e inserida artificialmente sobre cartão-postal do referido monumento arqueológico, e que na realidade o dito cronista jamais peregrinou muito além da Casa de Pedra em Caxias e das ruínas de São Miguel das Missões. Tudo em nome do factoide. Ruim, muito ruim. Só o que redime o tal cronista é o fato real de que, em tendo feito isso, está em total sintonia com o espírito de sua época!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de agosto de 2015)

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

O alerta da válvula

Comecei a ler um livro de ficção-científica intitulado “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?”, escrito por um dos grandes papas literários do gênero, o norte-americano Philip K. Dick (1928 – 1982). Sempre tive curiosidade de ler a obra, especialmente pelo fato de ter sido ela a inspiração a partir da qual o cineasta Ridley Scott teceu o argumento para a produção de um cult cinematográfico do século passado, “Blade Runner – O Caçador de Androides” (1982), estrelado por Harrison Ford.
O livro foi escrito em 1968 e a história é ambientada no então futurístico, longínquo e distante ano de 1992, quando a Terra já foi chacoalhada por uma devastadora Terceira Guerra Mundial que espalhou uma inesperada poeira radioativa e esterilizante sobre todo o planeta, obrigando a maioria dos sobreviventes a migrarem para planetas vizinhos, colonizando-os. Quem preferiu ficar na Terra, ralou-se, mas, mesmo assim, muitos decidiram permanecer, incluindo o herói da saga: Rick Deckard (Harrison Ford, no cinema), o caçador de androides.
O serviço de Deckard é exatamente este: caçar, identificar e eliminar os androides que desgarram de Marte e vêm se misturar com os humanos que ficaram na Terra. Como são quase perfeitos, os robôs são difíceis de identificar, pois agem como humanos, sentem como humanos, falam como humanos, amam e odeiam como humanos, e aí é que reside a graça da história toda, tanto nas telas quanto nas páginas. Tudo muito bem, mas o que me chamou a atenção, já no início do livro, foi a permanência de uma situação típica dos anos 1960 que o autor não conseguiu superar em sua aventura imaginária de criar um mundo futuro.

O personagem liga a televisão e fica pensando na vida enquanto aguarda a válvula do aparelho esquentar para trazer-lhe o som e a imagem. Philip K. Dick conseguiu imaginar um futuro mirabolante em que os seres humanos habitam Marte e possuem androides racionais, porém, não conseguiu fazer evoluir seus televisores de tubos com válvulas para nada sequer similar às telas planas de plasma com trocentas polegadas que possuímos hoje. Óbvio que o mérito da obra de Dick reside muito além desses pequenos penduricalhos cênicos que soam estranhos aos olhos de quem sobreviveu a 1992. O que fica, na verdade, é o alerta de que somos realmente incapazes de prever com exatidão o que o futuro nos reserva. Até porque, somos nós mesmos quem o moldamos, à nossa própria imagem.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de agosto de 2015)

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Bem na foto

Agora, sim, me caíram os butiás do bolso. Descobri, vejam só, que sou mais bonito do que inteligente! E isso que passei a vida inteira apostando as minhas fichas na equação inversa. Não que eu tenha de repente acordado transformado em um Brad Pitt, nada disso. Continuo tão kafkianamente feio quanto sempre, nada mudou, a não ser a descoberta de que minha inteligência não é suficiente para compensar meu visual, que já é pobrinho. Vivia convicto de que meu maior valor pessoal advinha dos frutos do uso de minhas palavras, e não da minha imagem. Mastodôntico engano!
A prova veio esta semana, quando decidi alterar a foto de meu perfil em uma rede social. Sim, aquela rede social que você está pensando, que os veículos de comunicação denominam “rede social” sem dizer o nome, mas que todos sabem qual é. Já faz algumas semanas que comecei a postar na dita rede social as crônicas que cometo diariamente neste espaço no jornal Pioneiro, e venho monitorando o número de curtidas que elas angariam. Uns dias há mais, outros dias, menos, mas o número já se estabilizou, dá para tirar uma base, sabe como é? Bueno. Mas aí, dia desses, inventei de trocar minha fotinho lá do perfil. Pra quê!
O número de curtidas em minha foto superou em seis vezes o total de curtidas na crônica postada no mesmo dia, horas antes. O que significa que minha legião de amigos e seguidores aprecia mais meu visual fotográfico do que as profundas, elegantes, inspiradas, surpreendentes e esforçadas crônicas que tão modesta e dedicadamente produzo. E isso que a foto não tem nada de mais, sou apenas eu defronte a um ponto turístico afamado no planeta inteiro. Só isso.

Mas agora é tarde para eu remodelar minha trajetória de vida pensando em tirar proveito dessa minha recém descoberta fotogeneidade. Tarde demais para seguir a carreira de modelo; para entrar no BBB; para disputar concursos de beleza (até porque, esses certames estão cada vez mais apostando na inteligência dos candidatos e, como acabamos de verificar, é bem nesse quesito que ando pecando). Mas nem tudo está perdido. Semana que vem, me reunirei com o editor-chefe do Pioneiro, o Márcio Serafini, e vou sugerir parar de preencher este espaço aqui com textos e passar a publicar somente fotos minhas. Garanto que alavancarei a tiragem!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de agosto de 2015)

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O cachimbo de Shakespeare

Calma, vamos devagar, é preciso cautela frente às informações que circulam com a velocidade de abelhas famintas (abelhas sentem fome?) pelos domínios livres e desprovidos de quebra-molas da internet. Basta uma notícia bombástica ser veiculada, embasada em pretensos institutos de pesquisa situados remotamente, para que os pseudofatos ganhem contornos de verdade e passem a ser repetidos como se fatos fossem de fato. Nem sempre é assim.
Deparei-me esta semana com a “notícia” de que pesquisadores da Universidade de Witwatersrand, de Johannesburg, na África do Sul, andaram fazendo escavações nos quintais da casa de William Shakespeare (1564 - 1616), em Stratford-Upon-Avon (cidade onde o escritor nasceu), no interior da Inglaterra, e ali encontraram resquícios de antigos cachimbos contendo maconha. Foi o que bastou para que a imprensa mundial tascasse e passasse a repetir, em todas as partes: “Pesquisadores acreditam que Shakespeare fumou maconha para escrever obras”. Fácil, assim, ser pesquisador, não é mesmo? E fácil, assim, ser jornalista, pois não? Difícil é convencer gente como eu com essas fragilidades. Devagar na maionese.
Eu estive em Stratford-Upon-Avon há apenas três meses, conhecendo a terra que deu ao mundo o maior gênio da literatura. Ali, visitei a casa onde Shakespeare nasceu e viveu boa parte da infância e da adolescência, até se casar com Anne Hathaway (mesmo nome da atual atriz). Essa casa hoje é um museu aberto à visitação e está decorada como provavelmente o era na época em que o pequeno William ali vivia com seus pais. Não foi ali, portanto, que se desenvolveu escavação alguma. E se foi (o que não ocorreu), os cachimbos pertenciam ao pai de Shakespeare, e não a ele.
Muitos anos depois, já adulto e famoso em Londres devido a suas peças, Shakespeare, rico, mandou construir uma suntuosa casa em Stratford-Upon-Avon, onde viveu com a esposa e os filhos. Essa casa, anos mais tarde, depois da morte do dramaturgo, foi vendida, revendida e vendida de novo, até ser demolida e não restar-lhe sequer um traço. O que existe hoje é a propriedade e um buraco no local onde houve a casa. Talvez as tais escavações tenham ocorrido ali. Ali, onde muita gente viveu depois de Shakespeare e talvez um ou outro tenha fumado cachimbos com pretensa maconha. Não necessariamente Shakespeare.

Então, vamos com calma. Faz bem para nossa própria biografia evitar sermos teclas fáceis de reprodução automática. Do que quer que seja.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de agosto de 2015)

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Um romano em Roma

Um amigo meu que gosta de viajar elaborou uma “Teoria Geral do Viajante”, a partir da qual procura enquadrar dois tipos básicos e antagônicos de perfis de pessoas que se botam a flanar pelo mundo. Como ele mesmo se antecipa em explicitar em longa carta/e-mail que me enviou recentemente, após uma viagem feita a Minas Gerais, a teoria ainda está em construção e sujeita a reavaliações, porém, já tem os fundamentos de sua essência lançados, e os compartilho com o amigo leitor e com a estimada leitora, esses meus fieis parceiros das viagens mentais que empreendemos aqui por essas linhas, dia sim e dia também.
O primeiro tipo de viajante seria aquele (no qual meu amigo se diz enquadrar) que “viaja para abdicar de si, do que é, que quer experimentar, que quer deixar para trás um pouco (ou muito) de si, para encontrar o outro mundo, o diferente”. A segunda espécie de viajante é composta por aquelas pessoas que, ao contrário, “reafirmam sua condição, como a reiterar suas identidades perante o diferente na procura do que conhecem e que os circunda em sua terra de origem”. Esse segundo grupo de viajantes pode ser exemplificado pelas atitudes de uma pessoa que viajou com meu amigo e que se lamentava por não ter levado junto sua cuia de chimarrão, e por não encontrar restaurantes de comida a quilo para almoçar ao meio-dia, horário em que, aliás, precisava imperiosamente seguir almoçando, mesmo em viagem e passeando. Não podia, portanto, abdicar de seus hábitos caseiros, mesmo que tivesse diante de si todo um mundo novo a ser explorado, vivenciado, sentido, desbravado.
Assim como meu amigo, eu integro o primeiro grupo de viajantes, daqueles que, em estando em Roma, faz como os romanos, abdicando, nesse caso específico, somente de participar de orgias de arromba e de apontar o polegar para baixo no Coliseu, aprovando o sacrifício do gladiador derrotado. Mas, em estando na Inglaterra, eu experimento o típico chá inglês; na Escócia, testo o “black pudding” no desjejum escocês às onze e meia da manhã; em Paris, desfruto um “croque monsieur” à beira do Sena; em Cartagena de Índias, na Colômbia, arrisco destemidamente o degustar de nachos típicos vendidos em plena Calle de la Amargura.

A vida em si é uma viagem diária em torno de nós mesmos e do mundo que nos cerca. Cabe a nós fazermos dela uma experiência diariamente transformadora, mesmo que seja sem sairmos de nossas casas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de agosto de 2015)

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O estilo Matrioska

A técnica escolhida para tecer o início da crônica de hoje é o conhecido “Estilo Matrioska”. Bom, talvez ainda não tão conhecido assim, porque eu acabei de inventá-lo, mas, dependendo do sucesso alcançado entre os leitores, haverá de ficar conhecido, portanto, já me antecipo à colheita dos futuros louros. E, para variar, já me perdi em meio a tergiversações intercaladas e terei de protelar a aplicação do “Estilo Matrioska de Abertura de Crônicas” para o parágrafo seguinte. A ele!
Ah, antes, urge explicar o significado do termo “Matrioska”, para que não pensem que, além de inventar técnicas revolucionárias de abertura de crônicas, pus-me agora a também criar neologismos. As Matrioskas são aquelas bonequinhas russas, usualmente feitas em madeira, representando matronas em diversos tamanhos, que vão encaixando umas dentro das outras, a menor dentro da ligeiramente maior e assim por diante, até estarem todas inseridas dentro da Matrioskona-mor, em uma simpática representação da fertilidade feminina e da sucessão das gerações. Isso são as Matrioskas. Já o afamado “Estilo Matrioska de Abertura de Crônicas” fica protelado ao terceiro parágrafo. Agora sim, a ele!
Lá em casa, há uma cozinha. Na cozinha, existe um armário. Dentro desse armário, um dos gavetões foi destinado a abrigar os potes de plástico (eis o “Estilo Matrioska” de redação: a cozinha, dentro da cozinha o armário, dentro do armário a gaveta, dentro da gaveta, os potes... genial! E poderíamos avançar para as duas pontas: a casa é um apartamento que está dentro de um prédio... e os potes, alguns maiores abrigam outros menores... infinitas composições! Palmas, palmas, obrigado, obrigado... Ei, eu disse “palmas”, e não “palmadas”, calma, calma). Pois a crônica seria desenrolada a partir desse aspecto, o da esculhambação que se desenrola dentro do dito gavetão entre os potes, que fazem festas secretas noturnas quando ninguém está observando e se acotovelam lá dentro, às vezes impedindo que se abra o gavetão e, outras vezes, impedindo que seja fechado.

Coube a mim, no final de semana, a tarefa de organizar o gavetão dos potes de plástico. Tentei. Não consegui. Eu sou uma Matrioska ao contrário: dentro de meu corpo há um cérebro, dentro de meu cérebro não há nada... Ficamos sem crônica e gastei o novo estilo por nada.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de agosto de 2015)

sábado, 8 de agosto de 2015

Para lembrar Nagasaki

E não podemos esquecer de Nagasaki. Muito se fala sobre a bomba atômica lançada pelos Estados Unidos sobre a cidade de Hiroshima em 6 de agosto de 1945, na Segunda Guerra Mundial, episódio catastrófico em termos de vidas humanas civis que o mundo recordou na última quinta-feira, na data dos 70 anos do episódio. Como foi a primeira cidade da história do mundo vitimada por um ataque nuclear, todos os olhos costumam se voltar para Hiroshima. Porém, três dias depois da primeira bomba, os Estados Unidos voltaram a atacar e, em 9 de agosto de 1945, despejaram o segundo artefato sobre Nagasaki, causando  estimadas 80 mil mortes só naquele dia.
Não se pode esquecer Nagasaki, porque seu bombardeamento atômico, que neste domingo também completa 70 anos, faz um alerta sempre necessário para a humanidade, e que pode ser resumido a partir de uma crença ancestral japonesa. Os antigos sábios nipônicos costumavam alertar que, se alguma coisa acontecesse duas vezes, essa mesma coisa corria sério risco de acontecer uma terceira vez. É por isso que não se pode jamais esquecer do horror causado em Nagasaki pelo inferno atômico: Nagasaki foi a segunda, logo após Hiroshima. As armas atômicas continuam existindo no mundo, em poder de algumas superpotências que se julgam no direito de comandar os destinos da humanidade. Uma terceira vez precisa ser evitada a todo o custo, e o instrumento mais eficaz para isso são os esforços para que seja mantida sempre muito viva a chama da memória relativa aos efeitos mortíferos e trágicos do uso desse tipo de armamento.
Ao longo de seus seis anos, a Segunda Guerra Mundial foi pautada pelo desenrolar de horrores que só quem os viveu tem a capacidade de absorver sua inapreensível dimensão, se é que é possível apreender tamanhas desgraças causadas à humanidade pela própria humanidade. As bombas atômicas despejadas sobre duas cidades japonesas foram os movimentos finais da sinfonia de horrores reais em que se transformou o mundo de 1939 a 1945. Tudo em função da cobiça, da intolerância, da falta de diálogo, do totalitarismo, da megalomania, do racismo, do preconceito, do culto à violência, do desamor e da falta de respeito à vida e às diferenças.

Duas bombas atômicas, duas guerras mundiais... Que não haja lugar para terceiros nessas equações.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de agosto de 2015)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Refúgio tranquilo

Às vezes dá vontade de fugir, não dá? Sumir do mapa, largar tudo, não ser encontrado por ninguém, não ter de monitorar o vencimento das contas, poder faltar ao trabalho, descumprir compromissos, burlar horários, almoçar de noite e jantar pela manhã, deixar de lado os deveres, ludibriar o relógio, arremessar longe o celular, ignorar o noticiário, escapar do trânsito, enfurnar-se na caverna, ou na ilha deserta sempre sonhada, ou na praia, ou no campo, enfim, acomodar-se em algum não-lugar onde se possa não-ser por alguns dias, por algumas horas ao menos, ou mesmo por um punhado de minutos, caso nada disso seja realmente viável, e, na verdade, nunca o é. Mas que vontade que dá!
A literatura clássica nos fala do termo latino “locus amoenus”, que em tradução livre do latim significa algo como “lugar tranquilo”, representando um idílico local em meio à natureza a ser buscado, no qual se poderia encontrar a paz da alma que os seres humanos tanto almejam desde priscas eras. Também a tradição mitológica europeia vislumbra o chamado “Fiddler’s Green”, uma espécie de paraíso pós-morte destinado aos bons marinheiros, no qual seriam recompensados, pela árdua vida no mar, com a eternidade em um local onde a alegria é permanente.
Nos meus tempos de guri em Ijuí, lembro que meu pai adquiriu um pedaço de terra no interior da cidade, ao qual batizou de “Refúgio Tranquilo”. Não sei se ele batizou a área pretendendo evocar o “locus amoenus” da literatura clássica ou se foi apenas uma inconsciente coincidência sincrônica. O que sei é que, na infância e adolescência, eu tinha o meu próprio refúgio tranquilo instalado no pátio de casa, quando me sentava sob os galhos de uma frondosa timbaúva para ler gibis e os livros de Monteiro Lobato, naquelas longas tardes cujo silêncio só era quebrado pelo afinado coro das cigarras.

O desejo de construirmos paraísos factíveis ao alcance de nossas necessidades reais é uma necessidade vital para a manutenção da sanidade psíquica nesse cotidiano moderno pautado por atribulações, temores e ansiedades. Se não podemos fugir descabeladamente para a praia deserta dos sonhos, podemos, ao menos, durante aqueles dois minutinhos que sejam, dar uma escapadinha de volta para a sombra das timbaúvas de nossas infâncias e restabelecer as energias em um refúgio tranquilo erigido na mente. Eu tenho o meu. Qual é o seu?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de agosto de 2015)

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Lembremos de Enola

Você já ouviu falar da Dona Enola? Não? Bom, então, falemos um pouco a respeito dela, a data de hoje é propícia para isso. Na verdade, pouco se sabe sobre detalhes da vida da Dona Enola, apesar de ela ser uma figura significativa na História moderna. Ao menos, seu nome é uma referência marcante, ligado a um dos acontecimentos mais trágicos e transformadores da civilização humana.
A Dona Enola, cujo nome completo era Enola Gay Haggard Tibbets, era uma típica dona de casa norte-americana, uma mulher de seu tempo, igual a tantas outras. Sabe-se que nasceu em 10 de dezembro de 1893 em Glidden, no estado de Iowa, e morreu em julho de 1966 em Orlando, na Flórida, aos 72 anos. Em 1913 ela se casou com Paul Warfield Tibbets, com quem teve os filhos Paul Warfield Tibbets Junior e Barbara Ann Tibbets. Interessante um dos sobrenomes do marido dela, Warfield. Em tradução livre e literal do inglês, significa algo como “campo de guerra”. Ah, as coincidências...
Eu posso imaginar a Dona Enola amorosa, fazendo torta de maçã para os filhos, assando peru para o Dia de Ação de Graças, abrindo a porta de casa para dar doces aos filhos dos vizinhos fantasiados de fantasmas no Halloween, essas coisas típicas norte-americanas. Bom. O filho da Dona Enola, para seu orgulho, virou piloto da Força Aérea dos Estados Unidos, e dos mais importantes. Coube a ele a missão de pilotar o bombardeiro B-29 que, em 6 de agosto de 1945, exatos 70 anos atrás, jogou a primeira bomba atômica do mundo sobre a cidade japonesa de Hiroshima, matando estimadas 140 mil pessoas. A bomba foi batizada de “Little Boy” (“menininho”) pela tripulação do bombardeiro.

Ah, o avião também recebeu um nome carinhoso: “Enola Gay”, em homenagem à mãe do piloto. Ou seja, “Enola Gay” levou seu “Little Boy” para fazer travessura nuclear no outro lado do mundo. Evento de triste lembrança, embrulhado em uma ironia de guerra que não encontra mais lugar na história. O piloto Paul Tibbets morreu em 2007, aos 92 anos. O então presidente norte-americano Harry Truman, que ordenou o ataque, disse para ele não perder o sono por ter cumprido a missão. Teve longa vida, mas não sei se dormiu bem. Eu, aqui, perco o sono sempre que imagino o episódio. Mas é que não sou filho da Dona Enola. Até podemos esquecer a Dona Enola, mas não podemos jamais esquecer o ato que seu filho recebeu ordem para fazer.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de agosto de 2015)

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Desagravo aos ídolos

Um ataque desferido à honra, à imagem, à memória e ao talento de nossos ídolos exerce um poder devastador dentro de nossas almas igual, ou talvez até superior, a um ataque lançado diretamente contra nós mesmos. Isso porque uma agressão, uma calúnia, uma ofensa, uma injúria, um perjúrio, uma difamação, uma ignomínia, uma infâmia, uma deslealdade, uma traição, uma ofensa, uma mentira, a gente tira de letra e parte direto ao contra-ataque, às vezes na mesma intensidade, ou, em vezes mais raras (porque daí depende de maturidade), opta-se pelo mais sepulcral silêncio, deixando as pedras repicarem no vazio, ecoando na baixeza das almas de quem ataca.
Mas não, não sofri nenhum ataque, apresso-me logo em esclarecer para não deixar dúvidas, e se estou esclarecendo é porque obviamente desejo eliminar eventuais dúvidas, que é o que costumeiramente se pretende quando se esclarece, só para deixar tudo bem claro. E tampouco nenhum de meus ídolos andou sofrendo injustos ataques ultimamente, ao menos, não que me tenha chegado ao conhecimento, impossível monitorar tudo, afinal, meus ídolos são muitos, de nacionalidades variadas, alguns vivos, outros mortos, e pertencentes a esferas diversas da atuação humana. “Mas, então, o que é que há, velhinho?” - pergunta-me (e pergunta-se) o estimado leitor, a querida leitora.

O que há é que vezes há em que fico aqui, no silêncio dos turbilhões internos de minha mente, remoendo ataques antigos desferidos contra ídolos meus sem que eu estivesse lá para defendê-los, e ponho-me a contra-argumentar mentalmente, fazendo terra arrasada das pequenezas que tentaram apequenar a grandeza desses grandes. “As obras de Shakespeare não foram escritas por ele”? Ora, pois, essa agora... “Rubem Braga, Sérgio Porto e outros cronistas legaram uma literatura menor”? Ah, francamente! “A música dos Beatles é banal”? Aham, me poupem... Atacar meus ídolos é atacar a mim mesmo. Defendê-los é obrigação minha, mesmo que em discurso mental, a fim de resguardar minha própria essência e plenificar aquilo que sou frente a meus próprios olhos. Não mexam com minha turma, que parto para o discurso mental. Dentro de mim, meus ídolos repousam plenamente justificados.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de agosto de 2015)

terça-feira, 4 de agosto de 2015

No meio do caminho, ficaram as certezas

Eu tenho plena consciência das minhas limitações. Da enormidade delas, e do quanto elas exigem que eu me mantenha dentro de meu quadradinho, a fim de não andar por aí metralhando a torto e a direito saberes que não possuo, habilidades que me são estranhas, sapiências que em minha boca soam falsas, conclusões que só a mim interessam. Não sou doutor em nada, e o pouco que julgo saber - por ter aprendido vivendo -, mantenho constantemente sob o policiamento da dúvida. Quanto mais leio, menos sei; quanto mais estudo, mais lacunas se abrem; quanto mais reflito, menos concluo. No meio do caminho, foram se despregando de mim os fios de cabelo e quase todas as certezas. Sou a antítese da evolução humana e me consolo na possibilidade de, ao menos, poder servir de exemplo a não ser seguido.
Mas antes que se condoam demais com meu repentino autoflagelo, vamos aos fatos. Já faz algum tempo que tenho a incumbência de desenvolver aqui neste espaço o exercício diário da crônica, e venho fazendo-o dentro dos limites de minhas possibilidades, conforme confessado ali no início. Óbvio que, para tanto, procuro beber na fonte dos grandes mestres desse gênero literário, a fim de tentar aprender como se faz e provocar a inverossímil magia da transferência do talento por meio da leitura, o que, na realidade, jamais acontece, como podem bem verificar aqueles que generosamente aqui me leem.
Do mestre Rubem Braga, por exemplo, não possuo a soturna sensibilidade quase depressiva que se transforma em poesia lírica sob o olhar literário do grande escritor. Dele, não possuo isso e tampouco o talento. De Sérgio Porto, o rei dos cronistas mundanos, não possuo a destreza da escrita leve que revela a essência humana por meio de tipos e situações aparentemente superficiais do cotidiano. Dele, nem isso, e tampouco o talento. De Luis Fernando Verissimo, não possuo nem a inteligência, nem o humor. Tampouco, o talento. De Jimmy Rodrigues, não possuo o dom da tecelagem das palavras certeiras na construção de textos elegantes. E nem o talento.

Segue longa a lista de outros tantos talentos que saboreio e dos quais equanimemente me distancio até me encontrar neste quadrado aqui, onde resto eu, com minhas insignificâncias e essa imensa capacidade de reconhecer e admirar talentos alheios. Ah, eis aí um talento! Bom, procurando, a gente sempre acha...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de agosto de 2015)

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Magia contra a birra

Todos sabemos que uma simples ida ao circo é ato que resgata a criança que vive adormecida dentro da gente e age com um poder terapêutico psíquico poderoso similar ao de um divã. Sim, eu sei, ninguém precisa se botar a ler as linhas de um banal cronista mundano para receber obviedades como “o circo desperta a criança adormecida em nós”, como dito acima por este que vos digita, mas não ficaremos nisso, prometo, não desista tão cedo.
Em mim, a criança já começou a se manifestar ainda nos dias que antecederam o último sábado à noite, quando fomos, então ao circo. Isso porque a programação foi-me informada por minha esposa lá pela metade da semana, quando ela, de posse de vários ingressos, anunciou: “sábado à noite, iremos ao circo”. Eu disse que não queria, e fez-se a birra em pacote completo, exatamente igual ao Marquinhos de décadas atrás, com sobrancelhas arqueadas, beiço desenrolado em cascata, cara de burro, cabeça abaixada, bochechas infladas, braços cruzados, pezinho batendo: “num quéio!”. Eu não queria ir ao circo. Desfiz a teima quando soube que meu afilhado de três anos de idade iria junto. Sabe como é, nós, crianças, ficamos alegres frente à perspectiva de nos reencontrarmos, e fomos, então, sábado à noite, ao circo.
Resultado? Diverti-me tanto quanto na infância, desautorizando a teima inicial, como costuma acontecer com qualquer criança birrenta na maioria das ocasiões em que se bota a fazer birra. Isso porque caiu por terra o motivo que me induzia a não querer ir a circo, já que, hoje em dia, esses espetáculos não podem mais apresentar animais selvagens amestrados (com o que adultamente concordo), nem o globo da morte com suas motocicletas envenenadas e barulhentas (idem). “Num queio saber de circo moderno”, batia o pé a birrenta criança grande, antes de ir. E que deslumbre de espetáculo pode ser um circo moderno como esse que minha esposa, meus cunhados e meu afilhado me levaram para assistir no sábado à noite! A criança grande adorou!

O que diferencia uma criança pequena de uma criança que cresce, no fim das contas, é sua capacidade de domar as birras e vencer os preconceitos que tentam morar dentro dela. Claro que uma postura assim não se constrói em um passe de mágica, mas, em sendo conquistada, tem o poder de operar magias dignas de picadeiros. Abracadabra!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de agosto de 2015)

sábado, 1 de agosto de 2015

Agosto a gosto

Vamos entrando com os pés direitos (quem tem mais de um, que os use todos, para tentar intensificar a atração da sorte) no mês de agosto, e poderia aqui o cronista ceder à tentação da obviedade e passar a tecer um emaranhado de relações reais e imaginárias sobre o dito popular que faz bullying com esta época do ano, querendo incutir-lhe a bandeira de mês do desgosto, mas não faremos isso, caro leitor, querida leitora, haveremos de encontrar outro viés, menos óbvio, mais condizente com as reconhecidas capacidades que temos – o cronista e os leitores – de velejar por abordagens menos rasas. Aprofundemo-nos, portanto, pero no mucho, porque, como alertavam minhas avós, no raso sempre é mais seguro.
Desembarcar em agosto, agora pensando bem, já que combinamos de nos colocar a refletir, promove na verdade uma sensação levemente alvissareira em nossos espíritos. Pare um pouco, olhe para dentro e veja se não é assim, se não estou pleno de razão. Afinal, se conseguimos chegar até aqui, depois de passarmos heroicamente enfrentando os frios, as chuvas e as umidades de junho e julho, é porque estamos nos habilitando a já pressentir no horizonte, mesmo que ainda lá longe, alguns sinais de que, sim, a Primavera não vai nos trair, ela está lá, à nossa espera, sorridente, luminosa, cheirosa e de braços abertos, preparando-se para embarcar e vir até nós, basta esperarmos mais um pouco, recarregarmos nossas forças para enfrentar ainda mais alguns percalços, e sim, agosto é um mês envelopado em esperança.

 Eis um viés novo para ser agregado ao mês de agosto, e parece-me que, dessa forma, conseguimos sair das rasuras e lançar âncora em uma visão menos óbvia da realidade, conforme havíamos nos proposto no começo dessa crônica jornada, não é mesmo, querida leitora, caro leitor? Porque agosto é um mês em que tendemos a pedir por socorro, e não há de ser coincidência os Beatles terem escolhido esse mês do ano para lançarem seu quinto álbum de estúdio meio século atrás, em 1965, intrigantemente intitulado “Help” (“Socorro”). Como nos ensina a psicologia, se nos dispomos a pedir por socorro é porque no íntimo nos predispomos a sermos ajudados. Socorro, então, Primavera, não nos traia. Não nos dê o desgosto de um eventual abandono, é tudo o que pedimos com gosto nessa entrada alvissareira de agosto.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de agosto de 2015)