domingo, 18 de agosto de 2013

Sorvete na Sibéria

Todos me olharam como se eu fosse um ET. Sequer se deram ao trabalho de disfarçar o fato escancarado de que, frente à proposta que eu acabara de fazer ao grupo, nenhum deles mantinha ainda nenhuma dúvida de que eu não devia ser desse planeta mesmo. Na cara de Rosvinda pude ler estampado: “Deve ser é de outro plano astral, ou de outra dimensão, mas daqui da Terra é que ele não é”. O Deves e o Jardel seguramente pensavam coisas semelhantes ou piores, especialmente quando se tratava de pensar desabonanças a meu respeito.
E tudo isso apenas porque eu propusera aos amigos irmos comer sorvete no meio daquela tarde gelada de julho, décadas atrás, o vento minuano a soprar e transformar na passagem nossas orelhas em estalactites pendentes uma de cada lado de nossas cabeças estudantis. Sim, sorvete, ué, e por que não? Que tem a ver a temperatura ambiente com aquilo que nos desperta a fome e o desejo? Por que não posso saborear uma transbordante taça de sundae ou de banana split (os mais antigos pediam “balalaicas”), mesmo que os termômetros estejam marcando temperaturas siberianas? Que tem a ver a temperatura de minha boca, garganta, esôfago e estômago com as nuances do clima?
Afinal, não se toma café também nos meses de verão aqui em nosso eclético território? Sou proibido, então, de saborear uma feijoada em fevereiro? Sopa é só no inverno? Cerveja gelada apenas na praia? Vinho tinto somente de junho a agosto? Os esquimós não podem chupar picolé nunca na vida? Aos beduínos do deserto jamais lhes será permitido saborear uma garrafa de merlot acompanhada de um picante goulasch repleto de páprica? Que coisa mais sem graça!
Desgarrei da turma vituperando essas frases todas, dobrei a esquina, atravessei a avenida e fui-me sentar sozinho na lancheria mais badalada da cidade. Pedi a tal da banana split e um refrigerante “bem gelado”. Ninguém percebeu que eu tremia frio enquanto aguardava a chegada do pedido, pois naquela época eu usava um pala providencial. Quando chegou o sorvete, mandei ver, convicto que estava de minha personalíssima postura.

Depois faltei uma semana de aula devido a uma inominável dor de garganta que por pouco não me despachou em definitivo ao calor dos quintos dos... Mas desde então, não pauto minhas vontades e decisões pelo senso comum. E arco, claro, com as eventuais consequências.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de agosto de 2013)

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