quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Tempos estranhos

O escritor francês Marcel Proust (1871-1922), no sétimo e último volume de sua saga psicológica “Em Busca do Tempo Perdido”, reflete em determinada altura a respeito das consequências nefastas que a Primeira Guerra Mundial exercia sobre os espíritos dos cidadãos de sua época. Espantava-se o personagem principal (na verdade, o alter-ego do próprio autor) com o fato de homens gentis, inteligentes, sensíveis e bem educados, que ele havia anteriormente conhecido nos salões requintados da sociedade parisiense, envolverem-se, no front, em assassinatos em massa, violências e atrocidades em geral.
De certa forma, Proust antecipava em suas páginas toda uma linha de debates e reflexões éticas e filosóficas que se imporiam décadas mais tarde ao findar da Segunda Guerra Mundial, que suplantou a Primeira na capacidade de incentivar a humanidade a produzir horrores. A filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) foi uma das pensadoras que se debruçou sobre a questão, cunhando o termo “banalidade do mal” para designar o fenômeno que move pessoas corretas no dia-a-dia a se transformarem em verdadeiros monstros quando as condições sociais assim o permitem e/ou estimulam.
O fato é que nós, seres humanos, nutrimos uma forte tendência a nos deixarmos moldar pelo meio que nos envolve, aproveitando as situações de conflito e de falência das regras sociais para largarmo-nos alegremente à satisfação de nossos piores instintos, à fruição de toda a baixeza e vilania que parece insistir em permanecer à espreita de nossas índoles, por mais que aparentemente evoluamos em termos tecnológicos, científicos e filosóficos. Cidadãos do século 21 que somos, imaginamo-nos muito distantes e superiores aos nossos antepassados que queimavam feiticeiras em praça pública e exibiam o medonho espetáculo às suas crianças, ou aos senhores e senhoras de bem que adquiriam, mantinham e açoitavam escravos como sendo a coisa mais natural (e legal) do mundo (como de fato era, naquela época).
Trata-se, no entanto, de uma perniciosa ilusão. Seguimos sendo, individualmente (e coletivamente), seres com capacidade latente para agir de forma tão bárbara quanto os hunos, os godos, os nazistas e os conquistadores espanhóis. Basta que a oportunidade nos seja oferecida de bandeja. Tem sido difícil ultimamente fazer casar o termo “era civilizada” com os dias que estamos vivendo.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de agosto de 2013)

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