quinta-feira, 3 de julho de 2014

A verdade é pouco

A realidade que nos cerca é pequena, é pouca, é insuficiente para saciar o desejo de vida que nós, humanos - seres conscientes, racionais, simbioses ambulantes moldadas em matéria e sensações -, possuímos. Viver nossas vidas cotidianas, aprisionadas e apequenadas dentro dos limites impostos pela realidade, nos é sufocante demais, e subvertemos essa imposição consumindo e criando arte.
É para isso que as artes existem: para ampliar as fronteiras de nossas existências, permitindo-nos pular as cercas dos limites da (pseudo) realidade que nos cerca. É só assim que conseguimos justificar a amplitude da maravilha de nossa existência humana, e é por isso que amamos cinema, teatro, literatura, música, dança, esculturas, quadros, fotografia, quadrinhos e assim por diante. As artes justificam a existência humana e é por causa delas que somos poupados da destruição total por parte dos deuses, que se reúnem em assembleia sazonalmente, com a intenção de dar um fim às diabruras aprontadas por nossa espécie, conforme nos revela Jorge Luis Borges em um de seus textos famosos. Os deuses decidem sempre por nos riscar da face da Terra, mas daí sempre há algum deles que evoca as maravilhas artísticas que somos capazes de gerar, e que tanto encantam os deuses, e acabamos sempre ganhando sobrevida. Os artistas são os redentores de nossa raça humana.
Zapeio pela tevê a cabo e pego um fragmento de entrevista que a repórter Ilze Scamparini fez em Roma com o diretor de cinema Ettore Scola. O cineasta acaba de lançar seu novo filme (após um recolhimento de dez anos), intitulado “Que Estranho Chamar-se Federico!”, em que faz uma homenagem biográfica a seu colega Federico Fellini, morto em 1993. Sobre o amigo, Scolla diz que “sim, ele era um grande mentiroso; mentiroso no sentido de inventor de histórias não reais, no sentido de criador de verdades fictícias; ele fazia isso porque a realidade não lhe bastava”.

O escritor peruano Mario Vargas Llosa (Nobel de Literatura de 2010) escreveu um livro intitulado “A Verdade das Mentiras”, no qual se debruça a resenhar 36 grandes obras ficcionais universais que nos ajudam a entender melhor a vida. “A missão do romance é mentir de maneira persuasiva, fazer passar por verdades as mentiras”, escreve ele, mostrando que “a ficção é a arte de dizer a verdade, nem que para isso seja preciso mentir – mesmo que seja um pouco”. Sorte a de nossa espécie essa, a de nascerem entre nós esses moldadores de inverdades tão fundamentais à nossa existência.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de julho de 2014)

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