segunda-feira, 7 de julho de 2014

Nem em sonhos

“Durante um dia inteiro de outono, escuro, sombrio, silencioso, em que as nuvens pairavam, baixas e opressoras, nos céus, passara eu, a cavalo, sozinho, por uma região singularmente monótona – e, quando as sombras da noite se estenderam, finalmente me encontrei diante da melancólica Casa de Usher. Não sei como foi – mas, ao primeiro olhar lançado à construção, vi se aproximar aos poucos uma figura que se assemelhava ao meu gato de estimação falecido no ano passado. Um gato preto se aproximava, e uma sensação estranha de que ele fugia de alguém que desejava emparedá-lo me acometia o íntimo...”.
 Opa, epa, que é isso... Quando me dei por conta, eu havia pegado no sono no sofá da sala, em plena releitura de alguns dos contos mais famosos de Edgar Allan Poe, e meus sonhos haviam invadido a história (ou, pelo inverso, a história lida era quem invadia os domínios de meu sono). Lancei um olhar para o relógio pregado na parede da cozinha: meia-noite passada. A hora das bruxas, se eu fosse personagem de Edgar Allan Poe, o que explicaria o sonho esdrúxulo e bruxuleante. Mas, na verdade, hora de rumar para a cama, dormir e levantar cedo para trabalhar, uma vez que sou personagem é de mim mesmo e a vida real é quem me espera.
Tirei os óculos de leitura (porque agora, nessa fase, a gente passa a usar óculos de leitura, sabe), cruzei as hastes sobre o elegante volume de capa dura de “Histórias Extraordinárias”, de Poe, já devidamente repousado sobre o pufe alaranjado da sala de estar, e dirigi-me para a cama, já meio sonado, um zumbi a esbarrar em paredes e quadros. Como não poderia deixar de ser, a noite toda sonhei que lia as páginas do afamado escritor norte-americano, e perambulei por cantinas repletas de barris de amontillado, sendo perseguido por um gato preto enorme que desejava emparedar a mim dentro do porão da Casa de Usher antes que ela caísse, mas na hora “h” eu era salvo por uma dupla de moças chamadas Berenice e Ligeia, que insistiam em me confundir com William Wilson, o tio delas que havia desaparecido anos antes ao mergulhar no Maelstrom.

Acordei suado ao despertar do relógio. Rumei para a sala ao encontro do livro que estava lendo antes de dormir e o marcador continuava cravado na mesma página em que o deixara, sem ter se movido uma página sequer adiante. De nada adiantara minha leitura turbulenta em sonhos durante a madrugada. Teria de encarar aquelas páginas no mundo desperto de novo, sem outra alternativa. Impossível delegar ao onírico aquilo que precisamos concretizar no mundo desperto. Afinal, a vida não é um conto de Edgar Allan Poe.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de julho de 2014)

Nenhum comentário: