terça-feira, 22 de julho de 2014

Cada pé com seu sapato

Há roteiros que são imutáveis e é preciso que nos resignemos a eles. Tomar banho, pentear-se, vestir-se e ficar pronto antes, beeeem antes do que a esposa, e ter de esperar por ela na sala antes de sair, é um desses roteiros que cabem a todo o homem casado. Sabemos disso e nos resignamos com aquela paciência marital que só nós, felizes casados homens, conhecemos em essência.
O que se passa pela cabeça de um homem engomado que espera pela esposa na sala, enquanto ela se esmera em produzir seu feminino ser para apresentá-lo ao mundo ao seu lado? Só nós sabemos. E, como somos confraria, cabe a nós resguardarmos para nós mesmos esses nossos pensamentos. Meus leitores casados sabem do que estou falando. Meus leitores solteiros podem imaginar. Já minhas leitoras que me perdoem, nada compartilharei desse tema em detalhes. Ao menos, nada de detalhes que comprometam, se é que algo há para ser comprometido (deixemos aqui a pulga da dúvida, por gosto).
O que se pode dizer é que, nesses longos minutos de espera, nos quais “só mais dez minutinhos” significam, via de regra, pelo menos o triplo disso em tempo real, muitos de nós não conseguem evitar o reflexo de cantarolar mentalmente alguns versos em inglês da famosa canção de Eric Clapton, “Wonderful Tonight”, cujas imagens evocam exatamente essa situação: o cara esperando a parceira se arrumar para sair. Em tradução livre deste que vos escreve, fico no sofá, engomado, cantando mentalmente: “É tarde da noite/ ela está pensando em que roupas vestir./ Ela põe a maquiagem/ e penteia seus longos cabelos loiros”.
E assim vamos nós ali, sentadões no sofá, o paletó já amarrotando, a gravata para o lado, as pernas esticadas sobre o pufe, e “lá-l-a-rá-lá-lá...” Os olhos passeando pelos quatro cantos da sala, observando os quadros, as lombadas dos livros, o risquinho na parede, até que, sem mais, repousam sobre os próprios pés ensapatados e... epa! Tem algo errado! Sim, senhor! Na pressa de vestir-me, calcei um sapato diferente em cada pé. Ambos pretos e sociais, sim, lustrosos, bonitos, semelhantes, porém, diferentes. Coisa que qualquer olhar observador detectaria já no primeiro “boa noite”. Uma meia de cada cor, vá lá, todos o fazem de vez em quando... Mas um sapato de cada espécie já é demais.
Ainda bem que detectei a gafe a tempo. Salto do sofá, cruzo por ela, que já vem vindo prontinha e perfumada pelo corredor, e enfurno-me de novo no quarto, providenciando a troca sapatal. Tudo isso para escutá-la reclamar, lá da sala: “Vamos, logo, amor, você está nos atrasando”! Sim, eu mereço.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de julho de 2014)

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