quarta-feira, 17 de junho de 2015

Camelo na sala

É engraçado, mas comigo é assim: eu sempre chego com o bonde já andando. Entro e a sessão já começou há pelo menos alguns minutos. Não tem jeito de esperarem por mim para darem início à cena, e isso que, via de regra, o protagonista, o artista principal, sou eu. Deveria haver mais respeito nesse quesito, mas vai reclamar para quem? Quem é o responsável pelo gerenciamento do andar dos sonhos? Quem é o diretor, o roteirista? Quem responde pela sala de projeção?
Apagam-se as luzes do quarto, deito na cama, entrego o ingresso não sei para quem e zzzzzzz, logo estou de olhos fechados, mergulhando no primeiro sono da noite, sem perder tempo, sem atrasos, mas não tem jeito, jamais consigo pegar o início da projeção, onde suponho que deva aparecer pelo menos o título do curta-metragem (sim, porque os sonhos, ao menos os meus, são curta-metragens, duram segundos ou poucos minutos, não sei os da senhora). Nada disso. Quando engato o primeiro ronco, a ação já está em andamento, sem que eu tenha conseguido me situar sobre nada, nem sobre o enredo, sobre a época da história, o ambiente, o contexto, coisa alguma.
Por isso, suponho, essa sensação de estranhamento com aquele camelo no meio da sala assim, de repente, vindo sei eu de onde, pois que, como disse, não me foi dado pegar a história desde o início. Deve haver algum motivo razoável para ele estar lá, naturalmente, mas, como não sei de nada, fico apavorado com o camelo no meio da sala, ainda mais no décimo-primeiro andar do prédio, e isso gera uma angústia indescritível porque daqui a pouco vão chegar os convidados e o que é que eles vão pensar, é preciso tirar aquele bicho dali, mas por onde, não posso arremessá-lo pela sacada porque poderia machucar alguém lá em baixo e daí até provar que o camelo não é meu, bom, que seja então pela porta de entrada mesmo, ela que de repente assume o formato de um imenso buraco de agulha e despacho o camelo por ali, sem me dar por conta da metáfora bíblica que se estabelece e então acordo, suando, o coração aos pulos.

Ah, sei lá, não imagino o que a senhora ache, mas isso não pode continuar assim. Exijo que passem a esperar por mim antes de darem início a essas histórias e não me deixem acordar antes de ver todos os créditos finais. Ao menos, para saber a quem responsabilizar pelo consumo excessivo de pesadelos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de junho de 2015)

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