sexta-feira, 19 de junho de 2015

Lembranças turbindas

Hoje a lembrança do acontecido é difusa, vem borrada devido à ação predatória do tempo, obrigando ao exercício da liberdade criativa para preencher as lacunas do fato e permitir que, assim, completado à força, se transforme em história a ser contada. A data eu lembro bem: novembro de 1979. Fica fácil lembrar não porque esteja lançada em algum diário preservado junto à caixa de guardados (na época, ainda era comum as pessoas cultivarem diários, apesar de a prática já estar em franca extinção), mas porque está impressa na capa do gibi (“Heróis da TV” edição número 5), que eu lembro ter adquirido na ocasião (a referência para os principais episódios de minha vida se ampara na recordação nítida daquilo que eu estava a ler na época).
Eu tinha 13 anos, ainda morava em Ijuí, na Rua dos Viajantes, e seria a primeira vez na vida que iria voar de avião. Meu pai tinha negócios a fazer em Porto Alegre, distante cerca de 400 quilômetros, e, dessa vez, iria a bordo de um Bandeirante que sairia do aeroporto municipal rumo ao Salgado Filho. Os Bandeirantes eram pequenos aviões de passageiros (com capacidade para levar 12 passageiros), produzidos pela Embraer entre 1973 e 1991 e, creio, devia fazer linha entre a região Noroeste do Estado com a Capital. Isso, claro, estou supondo. O fato é que o avião estava lá e meu pai decidiu me levar junto, talvez como prêmio por ter concluído o ano letivo na terceira série do primário sem pegar recuperação (aí também já estou supondo).
Não recordo de detalhes do voo, nem quanto tempo durou (a julgar pela lógica, provavelmente não mais do que uma hora), mas tenho ainda claríssima em mim a ansiedade frente à nova e excitante experiência, tamanha que resultou no enjoo a oito mil metros de altura e na necessidade de utilizar o saquinho plástico providencialmente disponível ali caso o almoço decidisse retornar por onde havia entrado, como de fato decidiu. Fiquei no quarto do hotel enquanto meu pai despachava suas reuniões de negócios na cidade. Li os gibis que havíamos comprado na banca da Praça da Alfândega, circulei pelos incríveis cinco canais disponíveis na televisão e, o melhor de tudo, pedi à recepção, pelo telefone do quarto, torradas e suco de laranja.

No dia seguinte, voltamos os dois a Ijuí em um carro alugado, eu acumulando lembranças e aprendendo a usar a imaginação para preencher histórias.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de junho de 2015)

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