Remexer em caixa de fotos
antigas em um sábado à noite, em casa, com tempo para trafegar pelas quebradas
do passado, dá nisso. Fica-se nostálgico, estaciona-se com os olhos fixos em
determinada foto, relembrando o momento, as gentes, que fim levou Fulano, a
mente vagando pelas surpresas do destino, as reflexões tangendo de leve a alma
para driblar eventuais tristezas, evitando entregar-se de todo às
reminiscências porque a regra estabelecida ao capturar a caixa era
restringir-se a curtir o ato e alegrar a noite. Mas o risco está sempre à
espreita. Mesmo assim, segue-se em frente.
Outra foto. Quem é essa pessoa
ali retratada? É um rapaz. Jovem. Sorri para a câmera, uma máquina fotográfica
antiga, de filme em rolo, de 24 poses, da época em que era preciso enviar o material
para a revelação em um laboratório fotográfico e esperar duas semanas para
enfim saborear o conjunto de imagens, levando-se em conta sempre que alguma
pose pode ter saído fora de foco, que pena, logo aquela de que havíamos gostado
tanto e que não há mais como repetir. Mas quem é o personagem que sorri para a
foto? Seus traços me são familiares. Reconheço o meio-sorriso na boca, os detalhes
da expressão, o posicionamento do corpo. Que é alguém da família, não há
dúvidas. Mas quem?
A própria foto vai dando pistas.
A julgar pelo formato quadrado do papel em que foi ampliada, pode-se inferir
que é alguém que nasceu no século passado (quando ainda usava-se máquinas
fotográficas analógicas). O relógio no braço esquerdo do personagem, pulseira
de couro preto, ponteiros, é precursor de relógios digitais. Funciona a corda,
não a pilha nem a bateria. Ele não porta telefone celular, nem smartphone, nem
sonha com a possibilidade da existência de aparelhos dessa natureza. Está ao ar
livre, o vento lhe revolve os cabelos. Não tem o nariz enterrado em nenhum
aparelho que o conecte com a internet, pois não sabe o que é e-mail, blog, rede
social, twitter.
Pelo visto, ele se comunica por
telefone, orelhão, cartas datilografadas em máquina de escrever. Sua televisão
a válvula, de 14 polegadas, sintoniza quatro canais, o que o deixa muito
faceiro. De fato, a foto mostra o sorriso pleno de uma criatura inserida no
século passado. Agora reconheço. Ele é eu mesmo. Fecho a caixa e devolvo-a à
prateleira. Já viajei o suficiente por esta noite.
Como até cronista mundano tem direito, saio amanhã em merecidas férias.
Volto a encontrar o estimado leitor e a prezada leitora neste espaço dia 23 de
março.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de março de 2016)
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