quarta-feira, 23 de março de 2016

O cara da foto

Remexer em caixa de fotos antigas em um sábado à noite, em casa, com tempo para trafegar pelas quebradas do passado, dá nisso. Fica-se nostálgico, estaciona-se com os olhos fixos em determinada foto, relembrando o momento, as gentes, que fim levou Fulano, a mente vagando pelas surpresas do destino, as reflexões tangendo de leve a alma para driblar eventuais tristezas, evitando entregar-se de todo às reminiscências porque a regra estabelecida ao capturar a caixa era restringir-se a curtir o ato e alegrar a noite. Mas o risco está sempre à espreita. Mesmo assim, segue-se em frente.
Outra foto. Quem é essa pessoa ali retratada? É um rapaz. Jovem. Sorri para a câmera, uma máquina fotográfica antiga, de filme em rolo, de 24 poses, da época em que era preciso enviar o material para a revelação em um laboratório fotográfico e esperar duas semanas para enfim saborear o conjunto de imagens, levando-se em conta sempre que alguma pose pode ter saído fora de foco, que pena, logo aquela de que havíamos gostado tanto e que não há mais como repetir. Mas quem é o personagem que sorri para a foto? Seus traços me são familiares. Reconheço o meio-sorriso na boca, os detalhes da expressão, o posicionamento do corpo. Que é alguém da família, não há dúvidas. Mas quem?
A própria foto vai dando pistas. A julgar pelo formato quadrado do papel em que foi ampliada, pode-se inferir que é alguém que nasceu no século passado (quando ainda usava-se máquinas fotográficas analógicas). O relógio no braço esquerdo do personagem, pulseira de couro preto, ponteiros, é precursor de relógios digitais. Funciona a corda, não a pilha nem a bateria. Ele não porta telefone celular, nem smartphone, nem sonha com a possibilidade da existência de aparelhos dessa natureza. Está ao ar livre, o vento lhe revolve os cabelos. Não tem o nariz enterrado em nenhum aparelho que o conecte com a internet, pois não sabe o que é e-mail, blog, rede social, twitter.
Pelo visto, ele se comunica por telefone, orelhão, cartas datilografadas em máquina de escrever. Sua televisão a válvula, de 14 polegadas, sintoniza quatro canais, o que o deixa muito faceiro. De fato, a foto mostra o sorriso pleno de uma criatura inserida no século passado. Agora reconheço. Ele é eu mesmo. Fecho a caixa e devolvo-a à prateleira. Já viajei o suficiente por esta noite.

Como até cronista mundano tem direito, saio amanhã em merecidas férias. Volto a encontrar o estimado leitor e a prezada leitora neste espaço dia 23 de março.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de março de 2016)

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