quarta-feira, 30 de março de 2016

O homem sem selfie

Eu não sei bater selfie. Apesar dos braços compridos, é curta a minha capacidade de sintonizar com as artimanhas tecnológicas dos aparelhinhos eletrônicos que passaram a surgir no mundo depois do advento do videocassete (aliás, que fim levaram minhas fitas VHS?). Estico o braço portando a câmera digital, abro aquele sorriso de boca fechada que me caracteriza, encosto a cabeça na da esposa e pimba: fotografo o azul do céu às minhas costas, uma vez que esqueci de clicar o botãozinho que inverte o foco da objetiva (câmeras digitais possuem objetiva?). Prática nada objetiva para a obtenção de selfies, mas ao menos já consegui uma boa coleção de nuvens esdrúxulas e de discos voadores flagrados ao acaso.
Mas também, calma lá, relativizemos as coisas, afinal, não sou tão anta assim. Meia anta, digamos. Não é sempre que esqueço de inverter a objetiva (concordando, ao menos para efeitos destas mal digitadas linhas, que então, sim, as câmeras digitais possuem objetivas nanotecnologicamente inseridas dentro de suas minúsculas entranhas chipadas). Há vezes em que parece que tudo vai bem, conseguirei registrar por conta própria uma foto de mim mesmo ou do casal que formo com a senhora minha esposa, porque o foco está certo e estamos outra vez sorridentes. Mas não dá outra. Seguro o aparelho de forma atravancada com os dedões se acavalando uns aos outros e o que obtenho são selfies de minhas impressões digitais. Ou de meia testa de um e as bochechas de outro, porque ergo demais a câmera. Ou o pescoço de ganso de um (o meu) e o de coral de outra (o dela), porque abaixei demais o aparelho. Sou a única pessoa do mundo que faz selfie do pescoço. Trata-se da assinatura do artista.

Sempre que navego pelas redes sociais, ponho-me a invejar profundamente todas aquelas pessoas (cem por cento delas, em média) que postam selfies de si próprias (esse pleonasmo horroroso faz parte de minha vingança), a todos os momentos, em todos os lugares. Fazem selfies com uma destreza natural, como se tivessem nascido com o dom. E eu aqui, a fotografar o topo da cabeça onde começam a rarear os cabelos, a barba do queixo, o lóbulo da orelha... Mas eis que vivo resignado. Sempre que desejo registrar alguma foto de mim mesmo, recorro à velha e ancestral prática de olhar em volta procurando identificar algum desconhecido que tenha um ar jovial, a quem possa abordar e pedir, gentil e sorridente, que bata de mim (ou do casal) uma foto. Sempre dá certo. Afinal, ainda desempenho com certa desenvoltura a arte analógica de me relacionar com gente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de março de 2016)

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