quinta-feira, 31 de março de 2016

Lavo e seco, logo, existo

Vamos às revelações. Eu detesto secar a louça. Lavar a louça eu até suporto. E quanto a guardar a louça seca, isso eu na verdade curto, faço com prazer. Atenção, amigas psicólogas: eis aí algumas pistas valiosas para a compreensão do funcionamento da psiquê de um cronista mundano. Afinal, a essência das pessoas pode ser revelada por meio dos mais prosaicos atos do cotidiano. A essência e também a individualidade de cada um. Mas a equação descrita acima não é unânime entre as gentes. Senão, vejamos.
Mesmo que não haja em toda a obra de Freud um capítulo dedicado à relação entre o inconsciente e a posição de cada um frente às etapas do processo de lavagem da louça suja, acredito que o tema mereça ser analisado com atenção, na promessa de oferecer revelações valiosas para a compreensão da alma humana. Pelo menos, da alma da parcela da humanidade que precisa arregaçar as mangas, molhar a barriga frente à pia e administrar louça suja, louça molhada e louça seca. Faço parte dessa parcela, daí, meu interesse sobre o fenômeno louçal, como já puderam perceber sem subliminariedades o atento leitor e a atilada leitora.
As nuances de cada um vêm à tona quando se aplica o questionário sobre a louça às outras pessoas e as diferenças se empilham. Diferentemente de mim, por exemplo, a senhora minha esposa respondeu assim ao questionário: lavar a louça ela gosta (já eu, apenas suporto); secar, ela suporta (eu odeio com paixão) e guardar, ela odeia (eu gosto, aprecio, faço questão). Ou seja, não possuímos nenhum ponto de convergência no quesito da louça. Fui adiante. Apliquei o questionário a várias pessoas de minhas relações e obtive os mais diversos espectros de combinações de respostas. Concluí que, também nesse aspecto da vida, cada um é cada um, não há fórmula precisa que enquadre as gentes nos gostares das coisas, nem mesmo no ato de solucionar a louça doméstica.

Caso essa despretensiosa crônica venha a servir de gatilho para o início de aprofundados estudos acadêmicos e científicos sobre o assunto, a partir da participação de voluntários em pesquisas de laboratório plenamente monitoradas (ratos brancos lavam louça?), talvez se possa descobrir, no futuro, surpresas na relação direta entre temperamento e louça. “Pessoas mais introspectivas preferem secar a louça; proativos gostam mais de lavar; indecisos crônicos optam pelo meio-termo da guardança da louça seca”, coisas do gênero. Mas vamos terminando por aqui. Uma pilha de louça me espera na cozinha. Suja, molhada ou seca? Ah, prefiro deixar o mistério...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de março de 2016)

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