quarta-feira, 23 de março de 2016

Tia Gertrudes no zero a zero

Tia Gertrudes não entende patavinas de futebol. Mas como é uma pessoa entusiasmada por tudo o que a cerca, jamais se recusa a sentar no sofá da sala junto com a família em dia de jogo importante e compartilhar as atenções que se fixam na tevê, unindo-se ao show de comentários que tomam conta do ambiente. Comentários “bola fora” e comentários “bola dentro”. Ela é a rainha dos comentários “bola fora”, como é de se esperar de quem entende patavinas de futebol e assiste a partidas de quando em vez, só para fazer companhia aos demais, como no caso de Tia Gertrudes.
Daí que é preciso haver paciência com a Tia Gertrudes ao longo da transmissão da partida, pois que ela alia os comentários “nada a ver” com perguntas “pra lá de óbvias”, testando a tolerância de sobrinhos, irmãos, sobrinhos-netos, amigos e agregados (Tia Gertrudes é solteirona e fica sempre com muita pena do time que perde). Torna-se necessário explicar para a Tia Gertrudes que aquele cara de amarelo que corre lá ao lado do campo é o bandeirinha, auxiliar do árbitro, que tem como funções principais detectar eventuais impedimentos, faltas, bola fora etc. Impedimento é melhor nem tentar explicar. Tia Gertrudes não vai entender. Mesmo que balance a cabeça após a explicação e diga “ah, sim”, ela na verdade não entende patavinas e vai repetir as mesmas perguntas na partida seguinte. Isso todo mundo já sabe.
“Foi gol?”, ela pergunta, assim que a bola sacode a rede após ser cabeceada pelo atacante, vencendo o goleiro, o juiz apitando e apontando para o centro do gramado e o narrador berrando a plenos pulmões. “Foi, sim, tia”. “Gol de quem?”, pergunta ela, que até então estava com os olhos fixos na tela, aparentemente acompanhando, como todos os demais, o desenrolar do lance de ataque. “Gol do nosso time, né, tia”, alguém responde, em meio à gritaria entusiasmada que toma conta da sala. “Ah, coitados”, condói-se ela, ao ver as imagens do goleiro adversário batido no chão, o zagueiro que falhou com as mãos na cintura e a cabeça baixa, enquanto “os nossos” cruzam correndo e celebrando. Tia Gertrudes tem pena dos que sofrem. Mesmo que sejam os panacas do time adversário.

É que Tia Gertrudes não tem time adversário. Isso porque ela não tem time nenhum. Ela, na verdade, não suporta disputas, sejam da natureza que forem. Aí fica difícil explicar a essência de um jogo de futebol, que não passa de uma metáfora da vida, essa eterna disputa em que, mesmo no zero a zero, alguém acaba levando vantagem. E na vida, Tia Gertrudes, não existe sequer zero a zero. Mas vai explicar...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de março de 2016)

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