Tia Gertrudes não entende
patavinas de futebol. Mas como é uma pessoa entusiasmada por tudo o que a
cerca, jamais se recusa a sentar no sofá da sala junto com a família em dia de
jogo importante e compartilhar as atenções que se fixam na tevê, unindo-se ao
show de comentários que tomam conta do ambiente. Comentários “bola fora” e
comentários “bola dentro”. Ela é a rainha dos comentários “bola fora”, como é
de se esperar de quem entende patavinas de futebol e assiste a partidas de
quando em vez, só para fazer companhia aos demais, como no caso de Tia
Gertrudes.
Daí que é preciso haver
paciência com a Tia Gertrudes ao longo da transmissão da partida, pois que ela
alia os comentários “nada a ver” com perguntas “pra lá de óbvias”, testando a
tolerância de sobrinhos, irmãos, sobrinhos-netos, amigos e agregados (Tia
Gertrudes é solteirona e fica sempre com muita pena do time que perde). Torna-se
necessário explicar para a Tia Gertrudes que aquele cara de amarelo que corre
lá ao lado do campo é o bandeirinha, auxiliar do árbitro, que tem como funções
principais detectar eventuais impedimentos, faltas, bola fora etc. Impedimento
é melhor nem tentar explicar. Tia Gertrudes não vai entender. Mesmo que balance
a cabeça após a explicação e diga “ah, sim”, ela na verdade não entende
patavinas e vai repetir as mesmas perguntas na partida seguinte. Isso todo
mundo já sabe.
“Foi gol?”, ela pergunta, assim
que a bola sacode a rede após ser cabeceada pelo atacante, vencendo o goleiro,
o juiz apitando e apontando para o centro do gramado e o narrador berrando a
plenos pulmões. “Foi, sim, tia”. “Gol de quem?”, pergunta ela, que até então
estava com os olhos fixos na tela, aparentemente acompanhando, como todos os
demais, o desenrolar do lance de ataque. “Gol do nosso time, né, tia”, alguém
responde, em meio à gritaria entusiasmada que toma conta da sala. “Ah,
coitados”, condói-se ela, ao ver as imagens do goleiro adversário batido no
chão, o zagueiro que falhou com as mãos na cintura e a cabeça baixa, enquanto
“os nossos” cruzam correndo e celebrando. Tia Gertrudes tem pena dos que
sofrem. Mesmo que sejam os panacas do time adversário.
É que Tia Gertrudes não tem time
adversário. Isso porque ela não tem time nenhum. Ela, na verdade, não suporta
disputas, sejam da natureza que forem. Aí fica difícil explicar a essência de
um jogo de futebol, que não passa de uma metáfora da vida, essa eterna disputa
em que, mesmo no zero a zero, alguém acaba levando vantagem. E na vida, Tia
Gertrudes, não existe sequer zero a zero. Mas vai explicar...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de março de 2016)
Nenhum comentário:
Postar um comentário