quinta-feira, 17 de abril de 2014

A aliança na taça

Minha avó paterna era uma pessoa doce, culta, inteligente, bem humorada, religiosa, delicada. Era vista com muito carinho e respeito por toda a família e nos círculos sociais pelos quais transitava em Ijuí, minha cidade natal, e também dela. Na vida anterior deveria ter sido princesa, brincávamos, dado seu comportamento elegante e o fascínio que cultivava pelo universo das monarquias atuais e passadas, que alimentava com a leitura de revistas, livros, jornais e notícias na televisão.
Porém, como todo o ser humano, possuía um lado, digamos, incomum. Minha avó (a “Oma”) tinha o estranho hábito de engolir as coisas mais bizarras nos momentos mais esdrúxulos, protagonizando episódios que se consolidavam no anedotário familiar. O primeiro deles foi por ocasião do pedido de casamento que recebeu de meu avô. Como era de praxe, meu avô adquirira, a custo de duras economias decorrentes de horas de trabalho extra, as alianças de ouro para fazer o pedido à noiva em um jantar previamente organizado com o mâitre do restaurante do clube para o qual a levaria naquela noite. A desculpa do jantar era uma apresentação de dança encenada por companhia famosa vinda da Capital do Estado, programa ao qual minha avó não resistiria.
Ao chegarem à mesa reservada, tudo já estava previamente preparado e o mâitre, lá na cozinha, colocara a aliança destinada a ela dentro do cálice de espumante e já trouxera as duas taças servidas. No momento oportuno, meu avô esperava que ela pegasse a taça para o brinde que ele proporia e se deparasse com a surpresa dourada reluzindo no fundo, em meio às borbulhas. Só que as luzes do salão se apagaram para a entrada triunfal dos dançarinos. Nesse breve ínterim, minha avó, sedenta, entornou o conteúdo do cálice.

Reacesas as luzes, espetáculo tendo início, meu avô curvou-se sobre a mesa e perguntou a ela; “E então? Viste a aliança? Aceitas o pedido?” E minha avó, com uma sensação estranha a lhe descer pela garganta, devolveu a pergunta: “Que aliança? Que pedido?” Tratava-se, sabemos hoje, daquela aliança que lhe descia peristalticamente até o estômago junto com o conteúdo da taça de espumante. O pedido, de qualquer forma, foi aceito, tanto é que existo e estou aqui para contar a história. A aliança, essa reapareceu poucos dias depois de uma forma natural que não cabe aqui esmiuçar, já que todos serão capazes de imaginar o que se passou, sem a minha ajuda narrativa. Mas o amor e a determinação são, sim, instrumentos poderosos para a construção da biografia de qualquer um, pois não?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de abril de 2014)

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