domingo, 20 de abril de 2014

Cem anos de companhia

Eu não tenho a mais remota lembrança relativa ao momento em que pela primeira vez na vida tive contato com o gelo. Deve ter sido na Rua dos Viajantes, em Ijuí, onde passei toda minha infância e adolescência, local que se transformou no cenário para a maioria das descobertas que fui fazendo ao ir descortinando as maravilhas do mundo.
O gelo passou a ter lugar de destaque entre essas maravilhas aparentemente triviais da existência a partir do momento em que o escritor colombiano Gabriel García Márquez o inseriu como elemento crucial de intensidade narrativa já na primeira página de seu clássico “Cem Anos de Solidão”, quando o Coronel Aureliano Buendía está à frente do pelotão de fuzilamento enfrentando a corrente de pensamentos sobre sua própria vida, que lhe cruza a memória. Aureliano recorda de sua infância vivida no mítico vilarejo de Macondo, quando seu pai o leva para conhecer o gelo, artefato estranho trazido pelos ciganos que de tempos em tempos visitavam o lugarejo exibindo maravilhas. Depois trouxeram o ímã, que causou sensação e alarde nas cozinhas, fazendo voarem panelas e caçarolas. Mais tarde, mostraram “um óculos de alcance e uma lupa do tamanho de um tambor”.
Eu posso não recordar de meus contatos primevos com objetos como o gelo, o ímã, o óculos e a lupa, que, para mim, soam como trivialidades. Mas recordo vivamente de cada um de meus encontros, ao longo da vida, com as maravilhas da boa literatura, e “Cem Anos de Solidão”, lido na Rua dos Viajantes em Ijuí (minha Macondo?), quando eu tinha 16 anos de idade, se configura em minha memória de leitor como uma das mais fascinantes e marcantes delas. O exemplar integrava os pertences pessoais que um tio portava na bagagem ao vir de São Borja morar conosco em Ijuí, no início de 1982. Enfiou-me ele aquele livro e devorei-o em poucos dias, meses antes de o autor ser laureado com o Nobel de Literatura, coincidência típica de roteiro de literatura fantástica que me deixou extasiado.

Agora, ao morrer, García Márquez cumpre o ato final do destino reservado aos grandes gênios das artes: sair de cena para que suas obras deem seguimento eterno à manutenção de sua memória. O legado de um grande escritor são os seus livros, esses cubos de gelo fantásticos e indissolúveis, que pingam histórias urdidas para aquecer a existência humana. O que García Márquez nos deixa são milhares de anos de companhia ao usufruirmos a literatura de suas páginas. A humanidade lhe é grata.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de abril de 2014)

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