terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Vida de inseto

Ontem de manhã, depois de despertar de sonhos conturbados, vi-me em minha cama metamorfoseado numa massa humana informe que demorou vários segundos para se recompor e conseguir, enfim, encarar o mundo em uma nova semana de trabalho. Sempre que sou acordado de forma antinatural, por um despertador ou algum barulho e/ou movimento externo inesperado, demoro um tempo para redescobrir quem sou eu, onde estou, como me chamo, o que devo fazer, esses elementos todos que, quando reunidos e apreendidos, resultam na consciência que temos sobre nós mesmos, ou seja, nossa identidade.
Durante esses infindáveis segundos após os despertares traumáticos, vejo-me mergulhado em um extraordinário limbo de consciência no qual não sou nada, não pertenço a nada, não significo nada. Sou um sem-nome, um sem-ser, uma não-pessoa, um não-nada, um nada-tudo sem individualidade. Uma situação bem kafkiana, poderiam dizer o senhor e a senhora que me leem, e estariam cobertos de razão. Durante alguns segundos, vejo-me entranhado em uma teia moldada pela mesma essência da angústia estupefaciente típica que permeia todos os livros escritos por Franz Kafka (1883-1924).
E não é para menos. Depois que me recomponho e redescubro que uma de minhas primeiras obrigações do dia é escrever a crônica do jornal Pioneiro, retomo a vida e sigo em frente. E no processo incessante de busca por um tema que possa magnetizar a atenção do leitor, detectei que, neste ano, celebra-se o centenário da primeira edição da obra “A Metamorfose”, lançada na Europa em 1915.

O livro é um dos mais lidos e celebrados do escritor, comumente resumido como enfocando o drama do personagem Gregor Samsa que, certo dia, ao acordar, vê-se transformado em um inseto gigantesco (a maioria dos leitores o imagina na forma de uma barata, mas eu, sabe-se lá por quais derrapadas da psiquê, vejo Samsa em sua cama como um imenso louva-a-deus). Há cem anos, portanto, Kafka nos legou, com sua obra, a alegoria perfeita para o estranhamento que temos frente a nós mesmos ao longo das transformações que a vida nos exige. O que fazer com essas transformações é o desafio que se impõe ao Gregor Samsa que habita cada um de nós.
)Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de janeiro de 2015) 

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