segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O milho dos outros

“O que você pretende fazer com todas essas espigas de milho?”, perguntou ela assim, de cara, sem mais, também sem menos. “Hãn?”, respondi eu, perplexo, empurrando o carrinho por entre as gôndolas. “Hãn”, obviamente, não é resposta que se dê a ninguém, muito menos à esposa quando ela faz uma pergunta direta. Ainda mais sobre espigas de milho. Depois de meu estupidificado “hãn?”, ela ficou parada defronte ao carrinho, os braços arqueados na cintura, me olhando fixamente, a cabeça meio inclinada para o lado, aguardando resposta mais convincente. Essa postura dela  normalmente indica o florescer de leve descontentamento. Comigo. Melhor pensar rápido. Sempre. Mas nem sempre dá.
Baixei o olhar para as compras que vinham sendo acotoveladas dentro do carrinho desde que ingressáramos no hipermercado, minutos antes, e deparei com cerca de uma dúzia de espigas de milho ali acomodadas. Coisa estranha. Recém saíramos das imediações da seção dos hortifrutigranjeiros, onde ela fora catar mamões e eu ficara tonteando mais adiante, observando as castanhas e os pistaches, mas eu é que não havia capturado milho algum. Tampouco ela, conforme os braços arqueados na cintura e o olhar via cabeça inclinada explicitavam. “Ora, pois, milho...”, balbuciei, manuseando uma espiga e chacoalhando-a no ar, como que para me certificar de que era real, em pleno corredor dos ovos e leite. “Larga isso de volta e vamos sair daqui, esse carrinho que você está empurrando não é o nosso”, disparou ela, e disparamos.
Isso de você se ver de repente dirigindo um carrinho de outra pessoa é mais comum do que podem pensar os braços arqueados na cintura de minha esposa. Problema é o que fazer com o carrinho que você inadvertidamente sequestrou e que agora se vê refém em suas mãos. “Cadê meu milho”, há de ter exclamado outro cliente, gôndolas atrás, ao deparar com o espaço vazio no local onde o deixara. Nas proximidades, certamente, haverá de visualizar meu próprio carrinho, com o azeite de oliva e pacote de seis sabonetes cuja embalagem jura que vou pagar por apenas cinco. Eis o problema: que ele também sequestre meu carrinho e o use como moeda de troca ao me encontrar: “teus sabonetes pelos meus milhos”.

Não foi preciso nada disso. Voltei ao local e recuperei meu próprio carrinho que ainda jazia lá, intocado. Orelhas baixas, fui ao encontro da esposa, que, à minha frente entre gôndolas, resmungava algo como “ora, milho...”. É temerário mexer no milharal dos outros.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de fevereiro de 2016)

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