A lembrança me vem em recortes,
como costuma acontecer com as recordações de episódios que marcaram nossas
infâncias. A fim de que esses recortes propiciem um enredo sensato, anos mais
tarde, na época das nostalgias (como agora, habitando que estou a estação das
cãs), vamos organizando-os ao arrepio da veracidade histórica (que se perdeu
nas brumas do tempo) e em favor do enriquecimento do nosso baú particular de façanhas
vividas (imaginárias ou não, fantasiosas ou não, reais mas com temperos, como
no caso da que segue).
Acredito que eu tinha uns oito
ou nove anos de idade, não mais do que isso. Morávamos em Ijuí e havia uma
festa de família no interior da cidade vizinha de Santo Ângelo (creio que se
tratava do casamento de um primo de minha mãe). Não recordo patavinas da
cerimônia religiosa, e da posterior festa em si, onde ocorreu, quem estava lá,
essas coisas. Mas eu estava lá, isso, com certeza, e é por isso que existe a
lembrança e a história, que vem a seguir.
Como sói acontecer em eventos
dessa natureza, havia um bando de crianças a correr e a arrepiar o salão onde
rolava a festa (detalhe: estamos falando do início dos anos 1970, época em que
crianças não dispunham de aparelhinhos internéticos nos quais hipnotizar
quietinhas as fuças durante horas a fio e eram convidadas a correr as tranças
ao ar livre e esfolar os joelhos escorregando na brita) e eu era uma delas. Gritávamos
e corríamos até que algum adulto teve a ideia de se aproximar de nosso bando e
propor uma brincadeira diferente. Ele prometia recompensar com uma nota de um
cruzeiro (uau!) a primeira criança que encontrasse no potreiro lá fora um trevo
de quatro folhas.
Sumimos do salão (que era o
propósito do esperto adulto) e fomos nos entranhar nas macegas lá fora, em
busca do raro troféu, quase impossível de achar, já que trevos, como já induz o
nome da plantinha, são configurados por três folhas e uma eventual quarta
depende de mutação genética. Mas de repente, um garoto disparou para dentro do salão, gritando “tioo, tioo,
achei!”. Fomos atrás, a tempo de ver o adulto repreender o impostor. Ele havia,
espertamente, colhido um trevo comum de três folhas e, com as unhas, partido
uma delas ao meio, na esperança de forjar uma quarta folha falsa. A pequena
fraude, inocente e infantil, não colou. Por algum motivo, o episódio me marcou
e lembro dele todos os dias ao assistir aos noticiários. Nosso país, em todas
as esferas (pública, privada, social e doméstica), está tomado por garotos
portadores de falsos trevos de quatro folhas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de abril de 2016)
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