terça-feira, 9 de agosto de 2016

Dando asas à brasileirice

Existe uma gama de comportamentos gastronômicos estereotipados e padronizados que caracterizam a essência dos povos. Na Inglaterra, por exemplo, você pode ter a experiência de sentir-se um verdadeiro inglês ao encomendar, no restaurante do hotel em que está hospedado, o preparo de um típico chá das cinco (“five o´clock tea”) para degustar ao final do dia. Na Argentina, é fácil mesclar-se aos nativos ao decidir fugir das limitações ritualísticas do hotel pela manhã e se dirigir às “calles” das imediações, nas quais poderá optar pelo estabelecimento mais aprazível que lhe servirá, sentado a uma mesa no passeio, ao ar livre, o “desajuno” pontuado por crocantes medialunas, café “con leche” e suco de pomelo. Sem esquecer de solicitar ao atencioso garçom uma edição do jornal do dia, para ficar mais completo o quadro (e podre de chique).
Pelas ruas de Paris, é bacana sair de uma padaria e circular pelos boulevares até o quarto do hotel transportando encravado debaixo do braço (como fazem os franceses, porque já vi) um comprido pão baguete ainda quentinho, que será degustado com nacos de queijo (roquefort, gruyère, camembert, à escolha do passeante) e generosos cálices de um vinho nacional. No Egito, não sei, mas não me furtarei a equilibrar uma sopa de areia sobre a corcova de um camelo ao anoitecer no Vale dos Reis, se esse for o caso. Na China, se meus futuros imaginários anfitriões insistirem, devorarei ao ar livre um espetinho de escorpiões fritos adquirido de algum ambulante, caso antes presencie os nativos fazendo o mesmo e me convençam de que aquilo é realmente típico e não sacanagem para se divertir às custas de turistas ocidentais.

Aqui no Brasil, onde nasci e moro, várias são as ocasiões em que me sinto genuinamente brasileiro, irmanado aos usos e costumes do povo ao qual pertenço. Uma dessas ocasiões se dá nos domingos em que a programação é ficar em casa me dedicando ao nadismo, sem vontade sequer de cozinhar. Aí, o que faço? Brasileiramente saio de casa por volta de onze e meia da manhã, percorro duas quadras até o mercadinho da esquina e adquiro um frango assado escolhido a dedo entre aqueles mais douradinhos que arrodeiam em espetos na assadeira. Pago em moeda nacional, agradeço em bom português e volto para casa, refestelar a família em um domingueiro almoço verde-e-amarelo. À noite, minha brasileirice vai pro brejo quando desfio as sobras e preparo um saboroso escabeche, a verdadeira e secreta motivação da compra do frango assado. Afinal, não dá para ser típico do alvorecer ao crepúsculo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de agosto de 2016)

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