Confesso que peguei o bonde andando, o bolo assado pela
metade, o peixe já enroscado na minhoca, mas, mesmo assim, bastou para extrair
dali alguns interessantes elementos para a reflexão. E refleti. Estacionei no
canal bem no momento em que a jurada do reality show de gastronomia (esses
programas televisivos em que os competidores se carneiam entre si, puxam um o
avental do outro, tascam pimenta no sagu do adversário a fim de vencerem as
provas) avaliava o prato que havia sido esmeradamente produzido por um dos postulantes
à Mescola de Ouro.
A jurada meteu na boca uma garfada das iguarias, sob a
trilha sonora induzindo expectativa e apreensão ao fundo (tipo aquela do filme
“Tubarão”, lembra, madama, dos sustinhos que levamos nos anos 1970?), mastigou,
virou os olhinhos e, finalmente, sentenciou: “Está bien (ela não é brasileira),
todo muy hermoso, pero... falta algo... falta en su prato una linha de
coerência”. Oh! Então o que faltava ao prato do pretenso e aventalado futuro chef
não era uma pitada a mais de sal, uma gota de angostura, uma polvilhada de
cardamomo, uma folhinha de salsaparrilha. Não! O que faltava ali era uma linha
de coerência, que proporcionasse uma ligação palatável entre o medalhão
apresentado, o molho que o encimava e a guarnição que o guardava. Uma linha de
coerência, ora, pois!
Fiquei a refletir, então. Se o requisito para que nos
transformemos em chefs é que saibamos oferecer uma linha de coerência em nossos
pratos, então, é passível exigir que apresentemos também linhas de coerência a
pautarem vários outros aspectos de nossas existências. Há que se ter linha de
coerência, madama mia, nos pratos que fazemos, nas roupas que vestimos, na
forma como dirigimos no trânsito, no estilo de música que ouvimos, naquilo que
dizemos, naquilo que fazemos, naquilo que pensamos, no jeito como tratamos as
pessoas, na forma como reagimos aos imprevistos e às frustrações, na expressão
ampla de nosso ser, em tantas coisas. A linha de coerência, pode-se deduzir, é
o instrumento que nos confere credibilidade frente ao mundo, às pessoas, à
sociedade.
Mas ela não nos impede de também sermos ativas e sadias
metamorfoses ambulantes. Adotar linhas de coerência não significa passar a agir
feito samambaias, imutáveis. Não. A dinâmica da vida requer que saibamos também
tirar temperos inesperados do bolso do avental e assim subvertermos essa linha,
ousando, experimentando, combatendo a inércia, reinventando-nos, revendo
conceitos, aceitando o novo e o contrário. Não devemos deixar esfriar o prato
da vida.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de agosto de 2016)
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