segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Por uma linha de coerência

Confesso que peguei o bonde andando, o bolo assado pela metade, o peixe já enroscado na minhoca, mas, mesmo assim, bastou para extrair dali alguns interessantes elementos para a reflexão. E refleti. Estacionei no canal bem no momento em que a jurada do reality show de gastronomia (esses programas televisivos em que os competidores se carneiam entre si, puxam um o avental do outro, tascam pimenta no sagu do adversário a fim de vencerem as provas) avaliava o prato que havia sido esmeradamente produzido por um dos postulantes à Mescola de Ouro.
A jurada meteu na boca uma garfada das iguarias, sob a trilha sonora induzindo expectativa e apreensão ao fundo (tipo aquela do filme “Tubarão”, lembra, madama, dos sustinhos que levamos nos anos 1970?), mastigou, virou os olhinhos e, finalmente, sentenciou: “Está bien (ela não é brasileira), todo muy hermoso, pero... falta algo... falta en su prato una linha de coerência”. Oh! Então o que faltava ao prato do pretenso e aventalado futuro chef não era uma pitada a mais de sal, uma gota de angostura, uma polvilhada de cardamomo, uma folhinha de salsaparrilha. Não! O que faltava ali era uma linha de coerência, que proporcionasse uma ligação palatável entre o medalhão apresentado, o molho que o encimava e a guarnição que o guardava. Uma linha de coerência, ora, pois!
Fiquei a refletir, então. Se o requisito para que nos transformemos em chefs é que saibamos oferecer uma linha de coerência em nossos pratos, então, é passível exigir que apresentemos também linhas de coerência a pautarem vários outros aspectos de nossas existências. Há que se ter linha de coerência, madama mia, nos pratos que fazemos, nas roupas que vestimos, na forma como dirigimos no trânsito, no estilo de música que ouvimos, naquilo que dizemos, naquilo que fazemos, naquilo que pensamos, no jeito como tratamos as pessoas, na forma como reagimos aos imprevistos e às frustrações, na expressão ampla de nosso ser, em tantas coisas. A linha de coerência, pode-se deduzir, é o instrumento que nos confere credibilidade frente ao mundo, às pessoas, à sociedade.

Mas ela não nos impede de também sermos ativas e sadias metamorfoses ambulantes. Adotar linhas de coerência não significa passar a agir feito samambaias, imutáveis. Não. A dinâmica da vida requer que saibamos também tirar temperos inesperados do bolso do avental e assim subvertermos essa linha, ousando, experimentando, combatendo a inércia, reinventando-nos, revendo conceitos, aceitando o novo e o contrário. Não devemos deixar esfriar o prato da vida.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de agosto de 2016)

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