quarta-feira, 30 de abril de 2014

Kit básico para a Copa

Falta apenas um mês e meio para a chegada do dia 12 de junho, data em que terá início a Copa do Mundo sediada aqui no Brasil. De lá até 13 de julho, o país sorverá um mês inteiro de futebol, cujas partidas serão transmitidas para quase todo o planeta, em uma celebração esportiva das mais significativas. Até aí, tudo bem, é isso aí mesmo. Mas...
Sabemos que a retumbante maioria das pessoas, por uma simples questão de lógica espacial e física, não conseguirá assistir às partidas de corpo presente, nos estádios. Isso será um desfrute reservado a apenas alguns milhares que terão disponibilizado tempo, dinheiro e proatividade no sentido de liberar suas agendas, obter os ingressos, fazer reservas em hotéis, comprar as passagens aéreas, essas coisas. Nós, os integrantes da mastodôntica maioria, vamos mesmo é alugar, no máximo, o melhor lugar no sofá da sala defronte à televisão e mandar ver no controle remoto (cujo botão ficará lacrado no canal esportivo de nossa preferência durante todo o período).
Mas também para isso se fazem necessárias certas providências e é bom o amigo já ir se alertando. Não preciso ser eu a dizer que seria aconselhável já ir organizando os estoques de cerveja, refrigerante, linguicinha, sorvete e sacos e sacos de pipoca, enfim, essas porcarias todas que, via de regra, consumimos quando estamos com os olhos vidrados na frente da televisão acompanhando os maus tratos desferidos contra a pelota dentro das quatro linhas. Fazemos isso ao longo dos anos acompanhando nossos campeonatos estaduais, nacionais e continentais, e temos uma certa experiência no negócio.
Porém, em uma Copa do Mundo, a coisa muda, parceiro. Seu sofá e sua sala serão inundados por pessoas (esposas, namoradas, parentes em geral, vizinhos e amigos) que, via de regra, não estão nem aí para o futebol. Mas quando chega uma Copa do Mundo, a cada quatro anos, se transvestem de torcedores fanáticos, sentam ao seu lado, comem da sua pipoca, secam a sua cerveja, vibram na hora errada e ficam dando pitacos ilógicos provenientes de quem não entende patavinas das regrinhas básicas do esporte. E lá vai você, explicar a diferença entre tiro de meta e escanteio; explicar o inexplicável impedimento (impedimento, bem o sabemos, é uma questão de sensível percepção macro da coisa toda); informar o placar a cada dois minutos, essas coisas que nos torram a paciência.

Pois, então, amigo leitor torcedor: previna-se. Junto com os estoques de produtinhos básicos para emporcalhar seu sofá, vá desde já acumulando estoques ilimitados de paciência. Vai precisar de muita.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de abril de 2014)

terça-feira, 29 de abril de 2014

Aos cancerianos, abacaxi

Domingo de tarde, nada para fazer, resolvo optar por navegar pela internet ao invés de acompanhar pela televisão os 90 longos e penosos minutos do pouco e pobre futebol normalmente apresentado por aquele time pelo qual torço desde que me conheço por gente. Clique pra cá, clique pra lá, em determinada página me deparo com uma matéria leve e suave, típica para ser digerida em um dia como aquele, e é ali mesmo que embarco.
A materiola se debruça sobre um livreto de uma escritora norte-americana, agora lançado no Brasil, intitulado “Chocolate para arianos, camarão para taurinos”. Curioso como sou, fui adiante na leitura da resenha. A autora, Sabra Ricci, é uma chef famosa que cozinha para grandes astros como Julia Roberts e Jim Carrey e, além disso, é aficionada por astrologia. Nessa obra de sua autoria, decidiu reunir suas duas paixões, elaborando dicas gastronômicas que seriam compatíveis para cada signo do zodíaco.
Adomingadamente leve como estava, decidi dar uma espiada nas dicas para os cancerianos, grupo zodiacal no qual me enquadro com entusiasmo desde que nasci. Como a autora decidiu (talvez não ela, mas os astros, ok) que os cancerianos são suscetíveis a problemas estomacais (eles de fato me atazanam, mas isso só quando cancerianamente exagero no grostoli e na polenta), o livro recomenda que nós, os nascidos entre 21 de junho e 20 de julho, ampliemos a ingestão de chá verde, abacaxi e melancia, que seriam elementos facilitadores da boa digestão.
Tá, chá verde, tudo bem, gosto bastante. Mas as frutas selecionadas para meu signo não poderiam ser de mais fácil manuseio? Pô, abacaxi, nem é preciso tecer maiores considerações, afinal, todos o conhecem e não é para menos que ele protagoniza uma das expressões mais populares referentes a dificuldades em geral, uma vez que descascá-lo é um ato que exige habilidade e paciência superiores ao que se necessita para, por exemplo, desfrutar de uma banana (indicada no livro para os capricornianos). E melancia também, né, convenhamos... Além da dificuldade no transporte devido às suas dimensões, trata-se de fruta para degustar em grandes grupos, justamente o quadro em que cancerianos se sentem deslocados e intimidados.

Fiquei com inveja dos piscianos, para os quais é recomendada a ingestão de iogurte grego. E também dos escorpianos, para quem o caviar cai como uma luva. Como não posso mudar de signo sem nascer de novo, decidi que, ao menos à mesa, passarei a me comportar como um leonino.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de abril de 2014) 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Vida saudável é dureza

Foi no cair da tarde de sexta-feira, quando encerrei minha semana de trabalho e decidi aproveitar o restinho de sol para dar uma caminhada pelo bairro, seguindo o exemplo e as recomendações de meu cardiologista, que é um ser caminhante. Caminha ele, caminho eu. Não fuma ele, não fumo eu. Não é bobo ele, tampouco eu.
Pois calcei o par de tênis e larguei-me pelas calçadas das cercanias, determinado a empreender pelo menos aqueles 50 minutos de caminhada ininterrupta que, dizem, é o suficiente para ativar não sei o que e proporcionar não lembro quais ganhos à minha saúde. Não preciso saber de cor nada disso. Basta-me saber que é saudável e me boto então a caminhar, desde que, óbvio, atente nas esquinas e nos cruzamentos ao cruzar ensandecido dos veículos que, eles sim, são deletérios à saúde de qualquer caminhante, caso se dê o infortúnio de colherem algum deles no meio da rua, ocasião em que vai para a cucuia o fato de ser ou não fumante, cuidar ou não da alimentação, beber moderada ou desregradamente, seguir ou não as orientações do médico, frequentar a missa aos domingos, não dizer palavrões, essas coisas todas.
Cuidando, então, nas esquinas, para atravessar as ruas, fui-me, lépido e fagueiro, caminhar pelas redondezas naquele final de tarde de sexta, conforme eu ia dizendo ali no início da coluninha. Metia um tênis na frente do outro quando minha atenção foi desviada para uma peixaria que abriu as portas recentemente nas imediações. “Opa, peixe! Peixe é bom para a saúde e para aumentar meus índices de não sei bem o quê”, raciocinei, decidindo que, na volta, faria um pit stop ali e levaria para casa alguma coisa que serviria de janta saudável para mim e para minha senhora, quando ela retornasse do trabalho.
Na volta, fiz o previsto. Comprei umas postas de salmão e rumei para casa. No caminho, de repente, fui atacado por um cachorrinho medíocre que farejou o cheiro irresistível do peixe e raciocinou que, em acabando com a minha raça ali, na calçada, garantiria ele próprio o jantar sem maiores incômodos. Cravou-me os dentes no calcanhar, sem aviso, o irascível, proporcionando-me minha primeira experiência de mordida de cachorro em 47 longos anos de vida.

Espantei-o com minha voz de cachorro grande e protegi minha caça, garantindo o sucesso do jantar, uma vez que, mais do que ao cusco, temia a possível reação da esposa ao revelar meu fracasso frente à disputa animal que se dava em meio à calçada. Hoje em dia não se pode mais confiar nem em singelos lulus. E que dificuldade manter a forma. Acho que vou comprar uma esteira.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de abril de 2014)

domingo, 27 de abril de 2014

A reflexão do Pineto

O último recenseamento oficial do IBGE, de 2010, apresenta Caxias do Sul como uma cidade de 435 mil habitantes (a estimativa para 2013 era de 465 mil). A projeção é de que o meio milhão de almas seja atingido já em 2015, porém, o ritmo alucinado da vida, detectado em cada esquina, em cada cruzamento do cenário urbano e adjacências, insiste em consolidar em todos a impressão de que esse número já é real hoje. E tudo indica que não vamos parar por aí.
Transformar-se em uma metrópole é uma vocação que já veio impressa no DNA dessa cidade desde suas origens, o que fica claro para quem quer que se debruce um pouco sobre os aspectos de sua história, desde seu surgimento, passando pelas aceleradas etapas de desenvolvimento que vêm moldando esse perfil proativo, trabalhador e pioneiro que tanto conhecemos. Mas todas as moedas possuem dois lados e o segredo do sucesso, como nos ensina há milênios a sabedoria ancestral, consiste na busca do equilíbrio entre essas duas faces. Será que estamos atentos a isso?
Essa preocupação também não é nova e permeia a atmosfera da cidade desde seus primórdios. Uma prova disso é o teor de algumas páginas do livro “Os Pesos e as Medidas”, de autoria do jornalista, escritor e tabelião caxiense Ítalo João Balen (1917 – 1981), lançado postumamente no mesmo ano de sua morte. Em dado momento da obra, Balen traz à cena o personagem Quelbel Pineto, um velho imigrante italiano que compartilha suas filosofias com o então menino Ítalo, sentado em uma venda na Caxias do final da década de 1920.
Pineto diz assim: “Sabes, filhinho, a mim me aprazaria prolongar minha vida cinquenta anos, até lá pela década de oitenta, quando o ar daqui talvez não seja o mesmo! Quando nesta cidade – digo-o eu – não se farão mais casas de madeira – porque os pinheiros já se foram todos – mas de tijolos, pedra ou só cimento; quando vocês terão, em cada canto, escolas, vias, fábricas e carros e coisas que em pensar me causam medo. E se a existência nesta nossa terra, no porvir, será inferno ou paraíso, é algo que não sei te predizer”.

Hoje, em 2014, já nos distanciamos quase quatro décadas além do cenário preocupante que o personagem Quelbel Pineto profetizou ao menino Ítalo. Inferno ou paraíso é o que construímos e estamos a moldar em Caxias? Cabe a nós, no dia a dia, definirmos para que lado desejamos que pendam os pesos e as medidas dessa nossa vida socializada de meio milhão de gentes.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de abril de 2014)

sexta-feira, 25 de abril de 2014

A medida de cada fobia

Cada um com as suas fobias, já dizia uma tia minha, que não podia ver borboleta que saía sapateando pela casa. Existem fobias esdrúxulas e fobias compreensíveis, porém, fobias são fobias e sempre atazanam a vida de quem sofre de uma delas, independentemente de ser enquadrável em um ou em outro grupo.
Entendo como fobias compreensíveis aquelas que fazem as pessoas terem medo incontrolável de pitt-bull, ou de cobra, ou de aranha, ou de político carreirista. Já as esdrúxulas são aquelas que parecem inofensivas para a maioria das pessoas, mas fazem algumas suarem frio, como os medos de joaninha, de dia ímpar, de cor amarela, de letra de funk, coisas assim.
Eu, de minha parte, venho cultivando uma crescente e irreversível fobia de atendente de loja. Basta eu me aproximar de uma loja (para onde normalmente só entro arrastado pelos cabelos por minha esposa, por isso que procuro mantê-los bem curtos, os cabelos), que já começo a suar frio, a tremer o queixo, a trolavras as pacar... quer dizer... a trocar as palavras. Tenho muito trauma de atendente de loja.
Mas como tenho, por outro lado, paixão pela compra de discos e livros, procuro controlar minha fobia de atendente de loja sempre que me vejo posicionado dentro de uma livraria ou de uma loja de discos, para onde minhas pernas costumam me conduzir irracionalmente sempre que estou a trotear pela cidade, a despeito de minha vontade. Procuro sempre passar despercebido para tentar vasculhar discos e livros sem que os atendentes me vejam, mas nem sempre isso é possível, e os encontros costumam resultar sofríveis, salvo exceções que, confesso, existem.
Semana passada, por exemplo, vi-me dentro de um sebo de livros aqui da cidade, em busca de um exemplar de “Os Pesos e as Medidas”, lançado em 1980 pelo ilustre caxiense Ítalo Balen, em que retrata de forma poética e bem-humorada, em dialeto vêneto e em português, um episódio ocorrido em Caxias na década de 1920. O jovem atendente me viu e perguntou o que eu queria. Já tremendo, informei que desejava o livro “Os Pesos e as Medidas”, ao que ele me olhou intrigado, querendo saber se tratava-se de livro de dieta. Corri para fora, sem livro, tremendo.

Duvido que um dia eu me livre desse trauma.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de abril de 2014)

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Lista de ex-extintos

Esta eu gostei: cientistas de sei lá onde estão empenhados em estudar uma maneira de desextinguir algumas espécies de animais, que estão extintas há milhares de anos, e trazê-las de volta ao nosso convívio planetário. Um dos focos principais do trabalho é o mamute, aquele bicho grande semelhante ao elefante, porém, peludo e com presas maiores, que a gente vê em filmes e desenhos.
Eu sou a favor da desextinção do mamute, especialmente porque, para isso, criou-se esse verbo novo, “desextinguir”, e sou fissurado em neologismos, no que, por sinal, me equiparo a Shakespeare (apenas na fissura, não na capacidade de criá-los, óbvio, ressalte-se bem e rápido, para evitar as pedradas certeiras da patrulha, que nessas horas costuma ter a mira afinadíssima). Mas já que vão desextinguir (ah, vou usar o novo verbo hoje até me lambuzar, e recém estou na metade do texto) o mamute e, depois, outros bichos dos quais temos saudades sem nunca termos conhecido (na minha lista de prioridades entrariam o tigre dente-de-sabre, o tiranossauro rex, o gliptodonte e, aproveitando o embalo, o monstro do Lago Ness), poderiam também, já que são cientistas e operam milagres, expandir os poderes da desextinção para outras áreas além da fauna pré-histórica, onde algumas ausências estão fazendo uma falta maior.
Na Língua Portuguesa, por exemplo, eu defendo que os cientistas procedam à desextinção (agora já transito com intimidade pelas flexões e formas do verbo, viram?) do trema, pois que ando cansado de comer linguiça sem trema. Linguiça sem trema é insossa. Era o trema quem dava tempero à linguiça e, confesso, aqui em casa, somos rebeldes e seguimos comendo é lingüiça mesmo, pois que aqui ela não foi extinta, não, apesar dos predadores da língua. E aproveitando a onda da desextinção, poderiam desextinguir o acento circunflexo do zoo, para que esses locais possam receber os mamutes desextinguidos na antiga forma zôo, que é como os mamutes estão habituados.

Ah, e é preciso estender a aplicação da desextinção também às ciências sociais e humanas. Vamos aproveitar o retorno dos mamutes aos zôos (que visitaremos comendo lingüiças), para desextinguir entre nós, humanos, conceitos como civilidade, cidadania, respeito, educação, tolerância, empatia, responsabilidade, probidade, essas coisinhas todas, extintas, parece, há muito mais tempo do que os mamutes, nas cavernas remotas da convivência social. Desextinções como essas urgem, a fim de evitar nossa própria extinção enquanto civilização.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de abril de 2014)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Aniversário de gênio

O mundo culturalmente civilizado celebra hoje, 23 de abril, os 450 anos de nascimento de William Shakespeare, o dramaturgo e poeta inglês que, conforme sustenta o catedrático norte-americano Harold Bloom, fez muito mais do que legar à humanidade um conjunto de 37 peças teatrais permeadas de genialidade. Com a construção de personagens complexos e psicologicamente bem elaborados, que se movem em tramas densas e originais, Shakespeare teria, segundo Bloom, alterado “o nosso modo de representar a natureza humana, se é que não alterou a própria natureza humana”.
O legado cultural de Shakespeare singra os mares do tempo encantando plateias e leitores e exercendo uma influência decisiva sobre o processo de criação artística ao redor do planeta no transcurso desses quatro séculos e meio. Datas redondas como essa, além de fazerem a festa da mídia e suscitarem as justas celebrações, oferecem o mérito maior de despertar a curiosidade e convidar todos os que não conhecem a obra do gênio a arriscarem seus primeiros mergulhos nela. Aos que já conhecem, fica o convite irresistível de revisitar algumas de suas principais obras, enfrentando a difícil tarefa de qual delas escolher, entre tantas, todas saborosas (Hamlet, A Tempestade, Sonho de Uma Noite de Verão, Rei Lear, Noite de Reis, A Megera Domada, A Comédia dos Erros, Muito Barulho Por Nada, Como Gostais, Romeu e Julieta, Henrique IV, só para citar um punhado das que mais aprecio).

Depois de conhecer a obra de Shakespeare, se encantar por ela e viciar-se, passamos, nós, leitores, a termos nossa lista de contatos pessoais populacionada pelos principais personagens shakespearianos, como se eles existissem com intensidade maior do que algumas pessoas de carne e osso (ou de bits e bites) que conhecemos na vida real. Shakesperare, ele próprio um personagem real cercado de mistérios tipicamente literários e aparentemente insolúveis, morreu no dia de seu aniversário, aos 52 anos de idade, em 1616 (o nascimento, que se celebra hoje, ocorreu em 1564). Em sua tumba, no interior de uma igreja em sua cidade natal (Stratford-Upon-Avon), há uma inscrição que amaldiçoa quem ousar exumar seus restos mortais. Só por isso, ela está inviolada até hoje, para desespero dos fãs que acalentam a esperança de encontrar ali, com os ossos do bardo, alguns originais de peças perdidas e outras nunca conhecidas. Permanece o mistério, viceja a lenda e segue vivíssima a obra do gênio. Recomendo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de abril de 2014)

terça-feira, 22 de abril de 2014

Qual é a sua?

Vem cá, me diz uma coisa: você sabe o que quer? Sim, desculpe chegar e já ir perguntando assim, de cara, mas é que o negócio é sério e não dá para simplesmente ir levando as coisas desse jeitão, sem mais nem menos, que corre-se o risco de acabar naufragando em águas rasas, dando uma de Costa Concórdia sem que ninguém em terra mande o capitão voltar a bordo para salvar a pátria. Sua pátria, meu amigo, só quem pode salvar é você mesmo, e quanto mais cedo se der por conta disso, melhor.
Semana passada, entrevistei um bem-sucedido empresário gaúcho que, em dado momento da conversa, decidiu compartilhar comigo os três pontos que ele julga cruciais a serem observados por alguém que almeja sucesso no que quer que seja. Obter uma formação específica, estudar línguas estrangeiras, fazer cursos especiais, entre outras, são, conforme diz ele, atitudes importantes e fundamentais para qualquer profissional que queira posicionar-se como competitivo em sua área de ação. Porém, é preciso mais. Para realmente tornar-se alguém diferenciado, especialmente no mundo de hoje, é preciso prestar atenção a alguns elementos que, esses sim, vão fazer a diferença.
E quais são esses três pontos? O primeiro deles, conforme o empresário, é o conhecimento. É preciso mergulhar no estudo a respeito da área em que você atua. Saber tudo. Ler. Pesquisar. Ir atrás. Manter-se informado sobre as novidades, descobrir para que lado sopram os ventos. Não vivemos a Era da Informação? Pois então, criatura, informe-se. E já.
O segundo ponto é o relacionamento. Não fique encastelado soberbamente atrás da trincheira de sua prepotência. Circule. Conheça as pessoas. Interesse-se por quem está ao seu redor. Mas isso de forma genuína, verdadeira. Sorria (de verdade). Amplie suas relações pessoais e profissionais. Mas de maneira real, não virtual. Empilhar trocentos “amigos” no “face” só para mostrar-se popular é a maneira errada de supor que está fazendo a lição de casa. Seja gente de verdade, aja como gente de carne e osso, fale, ouça, aperte a mão, olhe nos olhos. Estabeleça vínculos.

Número três: tenha clareza de objetivos. Ou seja: foco, cara. Saiba o que quer. Tenha claro o destino de sua jornada. Isso vale para o campo profissional, mas também para o pessoal, o afetivo etc. Você sabe o que quer, afinal de contas? Você vive para quê? Trabalha para quê? Levanta da cama todos os dias devido a qual motivação? Não sabe? Não pensou nisso ainda? Tá em tempo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de abril de 2014)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O mago decadente

Família é uma entidade viva e mutante, como se sabe, já que todos, invariavelmente, pertencem a alguma. A minha, de alguns tempos para cá, passou a ser reformatada pela chegada de novos integrantes via aproximações sentimentais e entregas de encomendas pelas cegonhas. Dessa forma, uma nova leva de crianças tem povoado os encontros familiares, alegrando o ambiente e exigindo atenções.
Dia desses, eu recordei que existem maneiras diversas de distrair a gurizada além de hipnotizá-las em frente a um televisor, a um celular ou a um Playstation. Lembrei-me das mágicas. Especialmente das mágicas que eu mesmo, na adolescência, protagonizava para distrair os adultos que frequentavam nossa casa lá na Rua dos Viajantes, em Ijuí. Esquisito como sempre fui, eu encomendava pelo correio livros de mágicas e kits com varinha, cartola, capa, baralho especial e outros artefatos (só não vinha o coelho, que o candidato a mago devia providenciar por conta própria), e me punha a treinar para, mais tarde, causar sensação. E causava, especialmente quando errava os truques, mas isso deixemos para lá.
Na Páscoa, lembrei de dois ou três truques que poderiam ser feitos na hora, utilizando objetos comuns, e fui ao trabalho. Sentei a turma toda defronte à mesa da cozinha (mais adultos curiosos do que crianças) e causei espanto com o surgimento dos coringas no topo do baralho, logo depois de eu os ter matreiramente distribuído pelo meio do mesmo. As expressões de espanto (”como?”... “ooohhh!!”... “ma, porco...”) indicavam que tudo ia bem, e segui adiante. Decidi ousar mesmo, e reativar o fantástico truque do sumiço do relógio de pulso. Como ninguém ali tinha um, peguei meu próprio telefone celular, que daria na mesma, e fui para o “hocus pocus, alakazim, alakazam”.
Desapareceu o celular sob os olhos arregalados das crianças e as barbas crispadas dos adultos, todos conjugadamente boquiabertos. Um bom mágico não revela seus truques e encerrei a sessão saindo de cena, mantendo acesa a sensação causada. O problema, amigos leitores, é que não consigo lembrar da mágica toda, e não tem jeito de descobrir onde diabos foi parar meu celular. Há dias que está sumido, sumidíssimo (mágica das brabas, essa minha).

Ainda bem que era meu e não dei prejuízo a terceiros. Só que agora minha esposa anda murmurando pelos cantos que a maior mágica que eu fiz foi em mim mesmo: transformei o adolescente mago em adulto anta.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de abril de 2014) 

domingo, 20 de abril de 2014

Cem anos de companhia

Eu não tenho a mais remota lembrança relativa ao momento em que pela primeira vez na vida tive contato com o gelo. Deve ter sido na Rua dos Viajantes, em Ijuí, onde passei toda minha infância e adolescência, local que se transformou no cenário para a maioria das descobertas que fui fazendo ao ir descortinando as maravilhas do mundo.
O gelo passou a ter lugar de destaque entre essas maravilhas aparentemente triviais da existência a partir do momento em que o escritor colombiano Gabriel García Márquez o inseriu como elemento crucial de intensidade narrativa já na primeira página de seu clássico “Cem Anos de Solidão”, quando o Coronel Aureliano Buendía está à frente do pelotão de fuzilamento enfrentando a corrente de pensamentos sobre sua própria vida, que lhe cruza a memória. Aureliano recorda de sua infância vivida no mítico vilarejo de Macondo, quando seu pai o leva para conhecer o gelo, artefato estranho trazido pelos ciganos que de tempos em tempos visitavam o lugarejo exibindo maravilhas. Depois trouxeram o ímã, que causou sensação e alarde nas cozinhas, fazendo voarem panelas e caçarolas. Mais tarde, mostraram “um óculos de alcance e uma lupa do tamanho de um tambor”.
Eu posso não recordar de meus contatos primevos com objetos como o gelo, o ímã, o óculos e a lupa, que, para mim, soam como trivialidades. Mas recordo vivamente de cada um de meus encontros, ao longo da vida, com as maravilhas da boa literatura, e “Cem Anos de Solidão”, lido na Rua dos Viajantes em Ijuí (minha Macondo?), quando eu tinha 16 anos de idade, se configura em minha memória de leitor como uma das mais fascinantes e marcantes delas. O exemplar integrava os pertences pessoais que um tio portava na bagagem ao vir de São Borja morar conosco em Ijuí, no início de 1982. Enfiou-me ele aquele livro e devorei-o em poucos dias, meses antes de o autor ser laureado com o Nobel de Literatura, coincidência típica de roteiro de literatura fantástica que me deixou extasiado.

Agora, ao morrer, García Márquez cumpre o ato final do destino reservado aos grandes gênios das artes: sair de cena para que suas obras deem seguimento eterno à manutenção de sua memória. O legado de um grande escritor são os seus livros, esses cubos de gelo fantásticos e indissolúveis, que pingam histórias urdidas para aquecer a existência humana. O que García Márquez nos deixa são milhares de anos de companhia ao usufruirmos a literatura de suas páginas. A humanidade lhe é grata.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de abril de 2014)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Conceito de normalidade

O cenário futebolístico gaúcho foi movimentado nos últimos dias devido à decisão do Tribunal de Justiça Desportiva de rebaixar para a Segunda Divisão o clube Esportivo, de Bento Gonçalves, como penalidade às ofensas racistas que parte de sua torcida desferiu contra o árbitro Márcio Chagas, em partida disputada contra o Veranópolis ainda durante as rodadas do Gauchão deste ano. A dura (e justa, e apropriada, e necessária) medida foi tomada em primeira instância e o clube pode recorrer para tentar revertê-la. De qualquer forma, o recado começa a ser dado de maneira mais explícita: não há lugar para o racismo na sociedade moderna, e os que insistem nisso devem estar cientes das consequências de seus atos incivilizados.
Mas houve outro detalhe que me chamou a atenção em meio às dezenas de reportagens que fui lendo para acompanhar o desenrolar desse caso. A equipe do jornal Zero Hora conseguiu entrevistar um dos torcedores suspeitos das agressões racistas, na intenção de compreender melhor suas estranhas motivações. Mantido no anonimato, o suspeito declarou, em certa altura da entrevista, à guisa de “defesa”, que não teria pronunciado frases racistas, mas que xingar juiz de futebol é algo “normal”. Em suas próprias palavras, ele diz assim: “Esse negócio de chamar de ladrão, safado, vagabundo, ordinário, isso é normal em jogo de futebol. Agora, dizer que eu o ofendi, aí é outra coisa, né? Posso ter xingado de ladrão e dessas coisas normais no futebol”.
Ou seja, traduzindo: o citado “cidadão” (?) nega ter gritado insultos racistas, mas admite ter proferido xingamentos de vários tipos contra o árbitro, o que, em sua visão, é uma atitude considerada “normal”. Eu leio isso e fico aqui, me perguntando: desde quando xingar alguém pode ser considerado algo normal? Xingar é normal? Insultar então é aceitável no cenário do futebol, uma prática esportiva que se apresenta como justa, fraterna, civilizada?

A partir do momento em que passa a ser considerado “normal” desferir insultos em determinado local ou situação, contra determinadas pessoas e/ou representantes de determinada função, então, convenhamos, algo anda muito mal na base dos conceitos éticos e morais de uma sociedade. Daí a avançar para insultos racistas, basta um passinho. Hoje é “normal” insultar. Amanhã será “normal” fazer insultos racistas. Depois de amanhã será “normal” jogar pedras. Depois de depois de amanhã... bem... melhor nem pensar...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de abril de 2014)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

A agulha invasora

Ontem compartilhei aqui um episódio bizarro acontecido anos atrás, envolvendo minha avó paterna, que engoliu a aliança de pedido de casamento em uma romântica taça de espumante preparada cuidadosamente por meu avô, em um jantar. Narrei o fato com a intenção de, nas entrelinhas, demonstrar que, apesar do incidente, o pedido foi aceito, eles casaram, tiveram filhos, netos e bisnetos, construindo uma longa vida a dois que se consolidou apesar do engasgo inicial.
O ponto para a reflexão da croniqueta consistia na percepção de que, com determinação, amor e vontade, qualquer entrave pode ser removido em favor do objetivo principal que desejamos alcançar na vida. Bonitinho, não? Afinal, uma crônica que se preze precisa pelo menos tentar proporcionar ao leitor um ponto para a reflexão, mesmo sendo moldada no tom de uma história aparentemente superficial e engraçada.
Foi por isso que invoquei a história de minha avó e suponho que tenha obtido a bênção dela de lá onde quer que ela esteja, certamente junto com meu avô, já que alianças de casamento engolidas dentro de taças de espumante devem deter um poder de união que ultrapassa o desaparecimento físico do casal de envolvidos, creio eu. Mas houve leitores que me escreveram insistindo para que eu narrasse outros episódios de minha avó engolidora de bizarrices. Cedo, então, ao apelo e libero mais um, torcendo para que ela não me venha puxar os pés de madrugada.
Já casada, de aliança devidamente estacionada no dedo, lugar que desde o início lhe era destinado pelo costume e o bom senso, minha avó teve de ir ao dentista fazer um tratamento de canal. Tratamento de canal, todos sabem, exige que se fique longos períodos com a boca aberta, aquelas agulhinhas cravadas em torno do dente, praticando a arte de engolir saliva de tempos em tempos sem fechar a boca. Numa dessas, glump, minha avó engoliu uma das agulhinhas, que estava frouxa em sua boca.
Ela sentiu a coisinha descendo pela garganta e fez um sinal ao dentista que, a princípio, não acreditava no que havia ocorrido, mas se convenceu dias depois, com a revelação das radiografias do estômago de minha avó, a engolidora. Diz ela ter passado cinco dias comendo bolas de algodão, que serviram para envolver o objeto pontiagudo e convencê-lo a sair da mesma forma como ela recuperara a aliança, anos antes.

Brincando, meu avô dizia tremer de medo sempre que um circo resolvia fazer temporada em Ijuí. Vai que estivessem precisando de engolidora de espadas e ela fugisse com o trapezista... Aqui também tem entrelinhas tá, leitores? Procurem.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de abril de 2014)

A aliança na taça

Minha avó paterna era uma pessoa doce, culta, inteligente, bem humorada, religiosa, delicada. Era vista com muito carinho e respeito por toda a família e nos círculos sociais pelos quais transitava em Ijuí, minha cidade natal, e também dela. Na vida anterior deveria ter sido princesa, brincávamos, dado seu comportamento elegante e o fascínio que cultivava pelo universo das monarquias atuais e passadas, que alimentava com a leitura de revistas, livros, jornais e notícias na televisão.
Porém, como todo o ser humano, possuía um lado, digamos, incomum. Minha avó (a “Oma”) tinha o estranho hábito de engolir as coisas mais bizarras nos momentos mais esdrúxulos, protagonizando episódios que se consolidavam no anedotário familiar. O primeiro deles foi por ocasião do pedido de casamento que recebeu de meu avô. Como era de praxe, meu avô adquirira, a custo de duras economias decorrentes de horas de trabalho extra, as alianças de ouro para fazer o pedido à noiva em um jantar previamente organizado com o mâitre do restaurante do clube para o qual a levaria naquela noite. A desculpa do jantar era uma apresentação de dança encenada por companhia famosa vinda da Capital do Estado, programa ao qual minha avó não resistiria.
Ao chegarem à mesa reservada, tudo já estava previamente preparado e o mâitre, lá na cozinha, colocara a aliança destinada a ela dentro do cálice de espumante e já trouxera as duas taças servidas. No momento oportuno, meu avô esperava que ela pegasse a taça para o brinde que ele proporia e se deparasse com a surpresa dourada reluzindo no fundo, em meio às borbulhas. Só que as luzes do salão se apagaram para a entrada triunfal dos dançarinos. Nesse breve ínterim, minha avó, sedenta, entornou o conteúdo do cálice.

Reacesas as luzes, espetáculo tendo início, meu avô curvou-se sobre a mesa e perguntou a ela; “E então? Viste a aliança? Aceitas o pedido?” E minha avó, com uma sensação estranha a lhe descer pela garganta, devolveu a pergunta: “Que aliança? Que pedido?” Tratava-se, sabemos hoje, daquela aliança que lhe descia peristalticamente até o estômago junto com o conteúdo da taça de espumante. O pedido, de qualquer forma, foi aceito, tanto é que existo e estou aqui para contar a história. A aliança, essa reapareceu poucos dias depois de uma forma natural que não cabe aqui esmiuçar, já que todos serão capazes de imaginar o que se passou, sem a minha ajuda narrativa. Mas o amor e a determinação são, sim, instrumentos poderosos para a construção da biografia de qualquer um, pois não?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de abril de 2014)

terça-feira, 15 de abril de 2014

Tem cupim na moldura

Não dá mais para ficar tentando tapar o sol com o coador. As notícias escancaram isso todos os dias de norte a sul no país e cada um percebe a situação em seu próprio entorno, obrigando-se a alterar hábitos e comportamentos. Agora, chegam os resultados dos estudos para demonstrar claramente o tamanho e o formato do monstro: somos, nós, brasileiros, uma das sociedades mais violentas do mundo.
O caldo entornou e não adianta insistir no discurso cor-de-rosa para inglês ver, de que tudo não passa de forçação de barra da mídia. Os números falam por si, especialmente os divulgados este mês pela ONU, inseridos no Relatório Global Sobre Homicídios, demonstrando o quadro da violência no planeta no ano de 2012. O Brasil ocupa uma desconfortável posição de destaque entre as nações mais violentas da Terra, respondendo por 11% dos homicídios (50 mil casos) registrados no planeta naquele ano (total de 437 mil), integrando o segundo grupo dos mais violentos (25 homicídios para cada 100 mil habitantes), na companhia de México, Nigéria e Congo.
O primeiro grupo (30 homicídios a cada 100 mil habitantes) é constituído por nações como Colômbia, Venezuela, Guatemala e África do Sul. Mas estamos demonstrando possuir uma vocação irrefreável para rapidamente migrarmos para o primeiro grupo, do jeito como seguem as coisas. Os dois fatores apontados pelo levantamento como sendo as principais causas da violência assassina no nosso país são o abuso de álcool e outras drogas e o acesso fácil às armas de fogo. Ou seja, mata-se aqui porque é fácil matar, uma vez que o casamento entre os dois fatores (armas e psiquê alterada) é socialmente facilitado. Isso, claro, sem falar na impunidade, na derrota do Estado frente ao crime organizado, na falência das prisões etc.
Mas o que o estudo da ONU não mostra é o processo galopante de inserção da violência no cotidiano do cidadão comum, que se transforma também em protagonista de pequenas violências comportamentais, essas que verificamos no trânsito, nas filas, nas calçadas, no teor dos e-mails e das manifestações em redes sociais, nas pequenas e grandes corrupções, no lixo jogado nas ruas e assim por diante. A violência, travestida de preocupante normalidade, está se tornando parte integrante da cultura nacional, junto com o samba, a caipirinha, o chimarrão, a Bossa Nova, o Carnaval, o futebol... Seguimos morando em um país tropical, bonito por natureza, sim. Mas olhem bem: tem cupim danado roendo a moldura do quadrinho.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de abril de 2014)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sob a clava de Grogh

O CENÁRIO: Em algum lugar do mundo.
A ÉPOCA: No futuro próximo, ano de 2020 d.C.
A CENA: Durante uma palestra sobre algum tema qualquer, o palestrante emite uma opinião relativamente banal, afirmando que, para ele, a cor mais bonita do mundo é o amarelo. Imediatamente, em meio à plateia, um ouvinte se levanta, saca uma arma, desfere cinco tiros contra o palestrante, que morre ali mesmo, sobre o palco. Enquanto o adorador do amarelo agoniza, o ouvinte/assassino, em pé em meio aos demais, afirma em alto e bom som: “Ele está errado. A cor mais bonita do mundo é o verde”. Ninguém ousa discordar. Ele guarda a arma e se retira do recinto. Afinal, a discussão estava encerrada. Ele vencera.
OUTRO CENÁRIO: Em algum lugar do mundo.
OUTRA ÉPOCA: No passado distante, ano de 10.000 a.C.
OUTRA CENA: Ugh está caminhando com sua clava à sombra do vulcão. Ugh acha o vulcão bonito, desde que não esteja ativo. Ugh é um adorador de vulcões e, sempre que encontra um deles, aponta para a formação rochosa, extasiado, e exclama “Nhoof, ugh, urgah”. O problema é que, pelas proximidades, circula Grogh, também com sua clava. A clava de Grogh é mais pesada que a de Ugh, pois Grogh é mais fortão do que Ugh. Não se sabe se Grogh odeia vulcões, ou se odeia Ugh, ou se simplesmente não entende o que Ugh quer dizer com “Nhoof, ugh, urgah”. O fato é que Grogh senta-lhe a clava em Ugh e racha sua cabeça ali mesmo, à sombra do vulcão, matando-o e encerrando também qualquer princípio de discussão.
MAIS UM CENÁRIO: Em todos os lugares do mundo.
MAIS UMA ÉPOCA: Os dias atuais, ano de 2014 d.C.
MAIS UMA CENA: Cada vez mais, a ferramenta preferencial utilizada pelas pessoas para afirmar seus pontos de vista, para discordar ou debater, é a agressão física e verbal, com violência e desrespeito. Pouco diferem de Grogh e Ugh e caminham a passos largos rumo ao futuro sombrio visualizado no início do texto. O insulto pessoal, a baixaria transportada na boleia do anonimato, as agressões físicas aos diferentes e aos que não pensam igual, o matar pelo matar, o cuspir, o xingar, o atacar, cada vez mais integram o conceito de convivência (?) de muitos.

Não sei, mas algo anda muito mal por aí. Começo a achar que era mais seguro passear à sombra de vulcões milênios atrás, apesar das poderosas clavas dos Groghs alheios.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de abril de 2014) 

sábado, 12 de abril de 2014

Com a faca no hall

Eu tinha raiva mesmo era do Senhor Marinho. A carranca fechada, o olhar furtivo sobressaindo por sobrancelhas espessas, a careca reluzente, tudo concorria para que o aspecto físico do personagem me levasse sempre, no início de cada partida, não só a desconfiar dele como a torcer para que fosse ele sempre o assassino do Senhor Ninguém, o dono da mansão na qual era invariavelmente morto em todas as partidas de “Detetive”, o jogo de tabuleiro que pautou muitas horas de minha adolescência.
Mas apesar de meu preconceito estabelecido contra o Senhor Marinho, nem sempre ele era o culpado. Uma das graças do joguinho era justamente a possibilidade de alternância do criminoso, bem como a arma utilizada e o cômodo em que a atrocidade havia sido cometida. “Coronel Mostarda, com a faca, na cozinha”, alguém acusava. E pá: de repente, alguém livrava a cara do Coronel Mostarda, com seu monóculo e bigodão. “Dona Branca, com a chave-inglesa, no hall”.
Mas, a Dona Branca? Com aquela carinha de governanta assustada? Assassinar o Senhor Ninguém com uma chave-inglesa? Não poderia ser. Passavam uma, duas rodadas... e nada de alguém aliviar a barra da Dona Branca... Será? De minha parte, estava mais era desconfiando da sexy, esguia e esbelta Senhorita Rosa, estirada no divã com sua piteira elegante, cujo charme não me enganava. Nas minhas fantasias, imaginava a Senhorita Rosa fazendo par com o Professor Black, o típico rato-de-biblioteca com cujo perfil eu me identificava por supô-lo um leitor. Se bem que até mesmo ele, na rodada anterior, não havia pensado duas vezes antes de eliminar o Senhor Ninguém com o cano no salão de festas. Pô, tandem tu, Professor Black?
Ah, e não esqueçamos da Dona Violeta, minha segunda suspeita preferida, logo depois do Senhor Marinho. Uma velhinha com cara de megera cujo nome permitia o trocadilho para “Dona Violenta”, uma vez que cometia seus crimes alternando o revólver, a corda e o candelabro, umas vezes na biblioteca, outras na sala de música e até mesmo na cozinha, vejam só. Pobre do Senhor Ninguém.

O que ficou daquelas tardes lúdicas com amigos e familiares ao redor do tabuleiro, na Rua dos Viajantes, em Ijuí, foi o aprendizado de que as aparências enganam. Nem sempre o feioso Senhor Marinho é o culpado. Às vezes, o pior da humanidade pode se esconder sob o sorriso encantador de uma aparentemente inocente Senhorita Rosa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de abril de 2014) 

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O leitor de rua

(Foto tirada por Ivonei de Carvalho em fevereiro de 2014 no bairro Glória, Rio de Janeiro)

Sempre que nos sentirmos desesperançados, sempre que estivermos a um passo de jogar a toalha na lona e abandonar o ringue, sempre que imaginarmos que a coisa não tem jeito mesmo então deixemos tudo para lá e vamos é cuidar de nossas próprias vidas, sempre que estivermos enxergando somente as nuvens em detrimento da réstia de luz solar que teima em se esgueirar por entre elas, sempre que esmorecermos... acabará surgindo de algum lugar aquela fonte de energia que renovará nossas esperanças e reabastecerá nosso tanque para prosseguirmos na batalha por aquilo que acreditamos, nem que saibamos que estamos a dar murros em ponta de faca.
Eu, por exemplo, sou um desses seres esquisitos que teimam em acreditar no poder transformador que o ato da leitura exerce sobre os espíritos humanos. Eu acredito fervorosamente que a aquisição do hábito de ler, do gosto pela leitura, do prazer do contato com o mundo dos livros, desperta na pessoa habilidades tais que o mundo, a vida, a existência passam a ser para ela um universo sem limites. Essa é a minha fé. A leitura forma. A leitura informa. A leitura liberta. A leitura diverte. A leitura entretém. A leitura consola. A leitura nos ensina a compreender o mundo e os seres humanos. A leitura nos ajuda a compreendermos a nós próprios.

A leitura é, pois, uma das mais elevadas ferramentas civilizatórias criadas pelo engenho humano. Privar-se deliberadamente de ler, no meu entender, é provocar contra si mesmo um dos mais tristes boicotes. Pois em um país em que uma funkeira recebe de professores de filosofia a alcunha de “grande pensadora moderna”, em que um ex-presidente da República afirma que “ler é uma chatice” e em que atores (?) revelam detestar ler, não faltam desestímulos para quem insiste em permanecer ativo na batalha em favor dos livros. Esta semana, porém, a redenção me veio a partir da cena que meu cunhado registrou um mês atrás na região central do Rio de Janeiro. Próximo a um bar, no bairro Glória, um morador de rua (foto) faz uma pausa para mergulhar silenciosa e atentamente na leitura. Ele redime a todos nós. De minha parte, preferiria conversar com ele do que com a funkeira pensadora, ou com o atorzinho ou com o ex-presidente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de abril de 2014)

quinta-feira, 10 de abril de 2014

O nocaute da popozuda

Tem vezes em que o hábito em mim arraigado, de procurar manter-me informado sobre o que rola mundo afora, ao invés de me proporcionar aquela sensação saudável de ser um cidadão consciente, acaba mesmo é me causando um profundo cansaço. Isso acontece naqueles dias em que minha estrutura psíquica está mais sensível ao ataque da sucessão de descalabros que nos atingem diariamente, disparados de todos os lados sem nos concederem possibilidade de defesa, o que, sabe-se bem, é um indesculpável agravante.
Hoje é um desses dias. Folheio os jornais pela internet e vou levando golpes na boca do estômago do meu bom senso até quase ir a nocaute (e não há técnico nenhum no corner preocupado com o resguardo de minha integridade, pronto para jogar no ringue a toalha e me proteger do massacre). Vou folheando e tentando encaixar um jab de esquerda que vem de Brasília, um gancho de direita desferido de Porto Alegre, um direto vindo direto de Caxias mesmo, um cruzado do exterior e por aí afora. Perco rapidamente o fôlego, baixo a guarda, os golpes continuam e nada de soar o gongo da cidadania, da seriedade, da humildade, da honestidade, da fraternidade, da tolerância, para me salvar.
Às vezes, a vontade que dá é de simplesmente desamarrar as luvas e pular sobre as cordas, fugindo do ringue no qual meus escudos se mostram impotentes. Não consegui, por exemplo, encaixar bem o cruzado direto no queixo desferido pela notícia de que a funkeira Valesca Popozuda foi retratada como “grande pensadora contemporânea” em uma prova de filosofia em uma escola pública no Distrito Federal, esta semana. O professor que elaborou a prova foi quem cometeu a barbaridade, e não algum aluno inventando resposta engraçadinha. Fui à lona.
O golpe concluiu o estrago que vinha sendo feito há tempos em minha tolerância ao absurdo, iniciado pelas declarações recentes do atorzinho global que orgulhosamente afirmou não gostar de ler e nem de assistir a peças de teatro e às do ex-presidente da República que admitiu que ler, para ele, era uma grande chatice. Frente a esses descalabros, dá vontade de fazer como dizia o mestre cronista Rubem Braga, décadas atrás, e passar a agir como se fosse “um sueco em trânsito”, e “não saber de nada, não entender uma palavra do que estão dizendo e escrevendo por aí, não ter nada a ver com nada, não se sentir responsável por nada, não ter vergonha de nada”.
Hoje, queria ser um sueco em trânsito. E, se possível, tocar fagote, como o Evandro, amigo do Braga, fazia.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de abril de 2014)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Atitude temerária

Nunca, mas jamais mesmo façam aquilo que eu inadvertida e temerariamente fiz segunda-feira passada, no centro de Caxias do Sul. Devo ressaltar que fiz não porque quis, mas sim devido a circunstâncias que não cabem aqui explicitar. Mesmo assim, foi perigoso, não deve ser repetido por ninguém e serve como exemplo.
Ciente de minhas responsabilidades de cidadão e de cronista neste conceituado jornal, utilizo o espaço que me é aqui concedido diariamente para compartilhar essa traumática experiência com o intuito de cumprir com meu dever cívico de alertar aos demais quanto às terríveis consequências possíveis de um ato revestido de perigo. Sabemos todos que vivemos em uma sociedade desigual em que a violência infesta o cotidiano de maneira epidêmica e, para sobreviver da melhor maneira possível, é necessário adotar medidas de proteção que afastem, impeçam ou, ao menos, diminuam os riscos de sermos suas vítimas preferenciais.
É por isso que gradeamos nossas casas; cravamos fechaduras triplas na pele de nossas portas; lacramos as janelas; instalamos alarmes nas residências, nos carros, no gato e no cachorro de raça; decoramos e esquecemos senhas de conta bancária, de acesso ao computador, ao e-mail, ao cartão de crédito; mantemos nas agendas dos celulares os telefones de emergência da polícia e da  Brigada Militar; evitamos lugares desertos de noite e de dia; optamos por estacionamentos pagos; circulamos com pouco dinheiro nos bolsos; redobramos a atenção dos sentidos ao sairmos das agências bancárias; atravessamos a rua quando identificamos perigos potenciais do lado de lá a partir de nossos preconceitos; não aceitamos balas de estranhos; recusamos ofertas de auxílio suspeitas e até mesmo as genuínas; negamos um copo de água para o carteiro; deixamos soltos no pátio os rotweillers, os pitt-bulls, os tigres, os jacarés e as plantas carnívoras; fazemos aulas de karatê e kung-fu (pronto, denunciei a idade agora) e segue a lista.
Mas o que ninguém ainda percebeu é o perigo estrondoso existente na atitude insana de carregar dois sacos de grôstolis pelo centro de Caxias do Sul no início de uma tarde de segunda-feira. Nunca em minha vida me senti tão desamparado e na iminência de ser atacado até mesmo por aquelas três velhinhas ou pelas raparigas adolescentes saídas da escola. Jamais, leitor, carregue grôstolis sozinho pela cidade. É mais perigoso do que perambular desatento com a carteira recheada à mostra. Está bem, riam. Mas depois não digam que não avisei.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de abril de 2014)

terça-feira, 8 de abril de 2014

Divagação aos cubos

Uma das premissas básicas da ciência é a de que suas leis, para obterem o status de leis, precisam caracterizar-se pela imutabilidade. Ou seja: pelo menos em ciência, lei é lei. Exemplo disso é a lei da gravidade, que puxa de encontro ao solo tudo aquilo que teima em inventar de ficar suspenso no ar por alguns instantes. Aviões sempre retornam para baixo (por bem ou por mal), pão com geleia sempre despenca da beira da pia e emporcalha o chão da cozinha recém varrido e por aí vai.
Mas a incerteza também parece rondar as férreas leis científicas, provocando abalos que, se não as põem por terra como aos aviões, ao menos criam brechas para a desconfiança, o que, para o espírito humano, sempre foi uma motivação para o avanço evolução adentro. Algumas leis, portanto, não parecem tão sólidas assim. Exemplo disso é aquela frase famosa que aprendemos nas aulas de matemática: “a ordem dos fatores não altera o produto”. Até pode valer para a matemática, mas não se sustenta no interior de Otávio Rocha, quando o assunto é a caipirinha preparada pelo atendente do bar no salão comunitário em que rola um dos menarostos mais fabulosos da Terra.
Ali, a ordem dos fatores altera, sim, o produto, e como! Obtive a prova científica disso no domingo passado, quando fui, com alguns familiares, deleitar-me ao meio-dia no evento gastronômico comunitário realizado em uma das capelas daquele distrito de Flores da Cunha. Já abancados em nosso canto do mesão no salão, coube a mim a tarefa de ir buscar uma caipirinha a fim de animar a espera pela chegada da comida. Trouxe o dito drinque, porém, a ala feminina da família achou que havia gelo de menos e minha cunhada retornou ao bar com o copo. Enquanto esperava a reposição dos cubinhos, ela observou o método utilizado pelo atendente para produzir as caipirinhas e retornou à mesa anunciando ter descoberto o motivo pelo qual aquela caipirinha estava tão saborosa: o atendente a produzia colocando os ingredientes na ordem certa, ou seja, na mesma ordem de feitura adotada por minha cunhada, famosa na família e arredores pela qualidade da caipirinha que sai de suas canecas.

É claro que a ordem de colocação dos produtos altera a caipirinha. Experimente começar tudo com a canha sem antes socar o limão com o açúcar no fundo do copo, para ver no que vai dar. A ciência, aos menos nos domingos de menarosto, não está com nada...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de abril de 2014)

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Toca Xirú!

Uma típica cena de filme policial sacudiu a pequena e pacata cidade de Giruá (17 mil habitantes), no Noroeste do Estado, sexta-feira passada. Os ouvintes que no final da tarde estavam sintonizados na Rádio 104.1 FM, acompanhando o programa conduzido pelo comunicador Jair Wathir, surpreenderam-se ao escutarem, de repente, algumas pancadas secas desferidas contra a mesa de som, vozes alteradas e ruídos similares a uma briga. Sem entenderem o que estava acontecendo, chamaram a Brigada Militar, que chegou a tempo de invadir o estúdio e evitar uma tragédia.
O locutor estava sendo ameaçado a faca por um ouvinte que, bêbado, exigia que fosse irradiada a música que ele havia solicitado minutos antes por telefone e que lhe fora negada. O agressor foi detido e o locutor explicou que negara o pedido do ouvinte porque a música não se encaixava no estilo da programação, um tradicional e popular programa de melodias de bandinhas alemãs. E o que o ouvinte inflexível queria escutar era a gauchesca “Corpo esgualepado”, do Xirú Missioneiro. Definitivamente, não dava, e o que quase aconteceu foi o esgualepamento ao vivo do corpo do comunicador.
Felizmente, tudo acabou bem: o locutor não se feriu, o agressor foi curar o porre no xilindró e o programa de bandinhas alemãs não foi desvirtuado bruscamente pela invasão de versos como “Cada dia que passa parceiro/ Meu corpo véio me dá uma sintoma/ Resquícios de uma vida bruta/ De tropiada, de esquila e de doma”. Teria sido um verdadeiro trauma.
O episódio todo tem origem no desatino causado pelo excesso de consumo de álcool por parte do protagonista, o que embaça qualquer tentativa de justificá-lo. Mesmo assim, sempre é possível refletir um pouco, e me flagro a pensar nessa tendência que temos às vezes de querermos ver nossas demandas atendidas sem atentarmos a quem endereçamos a exigência. Não podemos querer boa música campeira de uma banda de rock, ou que o restaurante de comida típica italiana sirva coraçãozinho de galinha, ou que o cronista Fulano escreva no estilo do cronista Sicrano, ou que Beltrana aprecie os mesmos filmes que eu, ou que todos pensem igual a mim, ou ainda que se comportem da forma como espero que o façam.

Conhecer os limites impostos pelas diferenças, aceitá-los, respeitá-los e mesmo valorizá-los é o primeiro passo para desobstruir o caminho da tolerância, a única via possível para uma convivência pacífica entre os semelhantes, tão dessemelhante que somos entre nós mesmos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de abril de 2014)

domingo, 6 de abril de 2014

Titanic ou Arca de Noé

Não sou um aficionado pelas superproduções cinematográficas hollywoodianas e nem fico ansioso esperando a estreia dos novos arrasa-quarteirões. Minha ânsia por esse tipo de entretenimento naufragou quase duas décadas atrás junto com o “Titanic” do Leonardo DiCaprio, filme cujo final, por sinal, eu já sabia desde o primeiro minuto de projeção (a coisa afunda e não há o que a salve).
Mas como toda a regra tem uma exceção (creio que até mesmo esta a tenha), eis que me flagro ansioso para assistir à mais nova superprodução hollywoodiana: o filme “Noé”, com Russell Crowe no papel principal (o barbudo construtor da famosa arca), acompanhado por um elenco composto por Emma Watson e Anthony Hopkins (será que ele interpreta Deus no filme?), sob direção de Darren Aronofsky. Este, de fato, eu quero ver.
Pouco me atraem os megalômanos efeitos especiais que certamente conduzirão as cenas da construção da arca, da entrada nela dos casais de animais e da enxurrada diluviana em si (dilúvios em nada impressionam a nós, caxienses, acostumados que somos às chuvaranças insistentes que nos visitam ao longo do ano). O que me interessa é acompanhar a forma como o diretor, o roteirista e os (bons) atores irão desenvolver a trama que se sustenta no poderoso e cruel dilema interno de um homem que se vê de repente confrontado com a incumbência de carregar nas costas o fardo do mundo.
Ao receber de Deus a hercúlea incumbência de construir uma gigantesca arca na qual deveria salvar, do iminente dilúvio, casais das várias espécies de seres vivos do planeta, Noé há de ter sido invadido por uma sensação que os filósofos alemães chamam de “weltschmerz”, ou seja, o “cansaço do mundo”. Trata-se de uma sensação que, desde então, acomete a todos os seres humanos (descendentes que somos dos sobreviventes do bíblico cataclisma) de vez em quando. É a sensação que temos naqueles dias em que o mundo inteiro parece pesar sobre as nossas costas, em que as atribulações de nosso cotidiano parecem muito superiores às forças que temos para enfrentá-las.

No entanto, tal como Noé, acabamos sempre arrebanhando exércitos de ânimo e forças insuspeitas, arrombamos as portas da prostração e seguimos em frente, vencendo as marés contrárias, salvando a nós próprios de nos afogarmos nos dilúvios forjados pelas atribulações da vida diária. Nenhum de nós deseja afundar com DiCaprio a bordo do Titanic. Se tivermos escolha, optaremos sempre por tíquetes para a Arca de Noé.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de abril de 2014)

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Mão na enxada

Da janela da sala em meu apartamento, observo o andamento de uma obra pública lá embaixo, que, quando concluída, resultará em uma área de lazer inédita para o bairro, com pista para caminhadas, banquinhos, pracinha, aparelhos de ginástica, essas coisas. Com tudo isso a meu dispor a poucas quadras de casa, prevejo em mim o redespertar do ânimo para empreender caminhadas diárias e exilar o sedentarismo, o que me anima.
Mas o que me desanima é o ritmo da obra. Ao longo da tarde em que passo no meu escritório caseiro (“home office”, em bom português), dirijo-me de tempos em tempos à janela da sala para verificar em que estágio se encontra o andamento do trabalho lá embaixo, ávido que estou pela sua conclusão. E aí, me desespero. Vejo lá os três homens de sempre, que já reconheço como os incumbidos da tarefa, mas seus ritmos diferem entre si. O de camisa azul está lá no canto da quadra, enxada em punho, puxando e nivelando a terra que tira de um montinho ao lado. Já os outros dois, um de camisa branca e outro de cinza, escoram as mãos sobre os cabos de suas respectivas enxadas, cada um ao lado de seu intocado montinho de terra, e conversam.
O quadro não se altera nos cinco minutos em que os observo, até retornar ao computador e às minhas próprias tarefas. Uma hora mais tarde, faço nova pausa e volto à janela, para espiar. E tudo segue igual como dantes. O de azul, puxando terra. Os dois outros, olhando e conversando. “Bom, Marcos, se o que você quer é exercício, por que não desce lá, arranca uma das enxadas do queixo de um daqueles dois e se bota a puxar terra junto com o outro?”, pergunta meu Grilo Falante. Mando-o calar a matraca e volto ao trabalho.
Mais uma hora se passa. Assento-me em minha torre de observação e, dessa vez, detecto que o cenário se alterou um pouco, com a chegada de um quarto elemento, esse, de camisa amarela. Camisa amarela e enxada na mão. Mas nem a camisa amarela e nem a enxada parecem exercer sobre o quarto elemento o efeito de injetar ânimo ao trabalho, porque opta pelo grupo dos conversadores de queixo escorado.

O de azul segue lá, impávido, puxando e aplainando terra, sozinho, a tarde inteira. Não fica sabendo das fofocas compartilhadas pelos outros três. Apenas puxa e aplaina terra para que, um dia, eu retome minhas caminhadas. Até lá, ainda tenho muito a fazer. Volto ao computador, porque a minha terra ninguém puxa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de abril de 2014)

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Encontro com a Salamanca

O Blau Nunes criado pela literatura elegante de João Simões Lopes Neto no início do século passado, para protagonizar sua penca de “Contos Gauchescos”, reveste-se das principais características do gaúcho típico que ceva nossa imaginação até os dias de hoje. Calado, bravo, honrado, justo, destemido, aprende com a vida e, a partir de suas próprias atitudes, transforma-se também em um protagonista de lições de sabedoria. Ao menos, para quem está aberto a sorvê-las.
Lopes Neto lança mão à bravura de seu Blau Nunes para que nos sirva de guia na temerária expedição que somos convidados a fazer penetrando os domínios da Salamanca do Jarau, a princesa/feiticeira moura transformada em salamandra (também chamada de Teiniaguá) que habita uma das furnas do Cerro do Jarau, a singular formação rochosa que virou atração turística lá em Quaraí. A aventura consta na antologia de mitos regionais que o autor reuniu em seu outro clássico, “Lendas do Sul”, recomendável a todos os que queiram fartar-se de boa leitura.
Pois, então, nossos olhos e nossas almas de leitores se botam a seguir na cola de Blau Nunes para dentro da caverna da Salamanca, uma vez que ele tem coragem de fazê-lo. Nosso herói tem conhecimento daquilo que todos dizem ser a chave para penetrar na furna, tocar na pedra preciosa que encima a testa da Teiniaguá e, então, ter realizados os seus desejos: é preciso entrar lá com “alma forte e coração sereno”. Revestindo o espírito com alma forte, o herói terá a determinação para enfrentar os desafios que lhe vão sendo impostos pelo caminho. Com o coração sereno, saberá avaliar a melhor atitude a ser tomada frente a cada um desses desafios.

Blau Nunes entra e sai da furna da Salamanca do Jarau e tem seu desejo atendido. Blau Nunes, o gaúcho de alma forte e coração sereno. Para concretizar sua façanha, ele também deu ouvidos a outro conselho: “Mas governa o pensamento e segura a língua. O pensamento dos homens é que os levanta acima do mundo, e a sua língua é que os amesquinha”. Blau Nunes, portanto, aprendeu a pensar bastante e a falar pouco. Transformava, assim, em ouro e diamante as raras palavras que lhe saíam pela boca. Bastante a ensinar esse Blau Nunes, com alma forte e coração sereno.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de abril de 2014)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

O coração de Dumont

O senso comum nos ensina que o atributo da generosidade humana reside no coração. Como bem sabem nossas avós, quanto maiores forem as dimensões do órgão responsável por bombear o sangue pelas veias e artérias do corpo humano, maior também será a capacidade de seu possuidor em praticar a generosidade e a filantropia em benefício dos outros.
Trata-se de uma equação diretamente proporcional. É isso o que faz nossas avós, e as avós de nossas avós, bem como as avós das avós de nossas avós, afirmarem com propriedade que “Fulano tem um coração enorme” sempre que desejam se referir a alguém cuja característica principal seja a generosidade. Nenhuma avó duvida disso. Faça o teste com a sua, pergunte a ela e ela lhe dirá. Caso você siga desconfiando, passe o jornal para sua avó ler o que vou revelar a seguir e, concluída a leitura, afaste-se dela rapidamente, porque ela vai esfregar o jornal em sua cara, exclamando “ahá”!
Alberto Santos Dumont, cara avó de meu leitor, o famoso “Pai da Aviação”, tinha um coração enorme. Nos dois sentidos: no literal e no metafórico. Vamos primeiro ao metafórico, que se fazia revelar a partir das ações benemerentes do inventor. Se não bastasse ter legado para a humanidade a técnica para vencer a resistência do ar, permitindo a construção dos aviões, Santos Dumont ainda primava pelo desapego ao dinheiro (até porque já era rico o bastante).
Ao vencer o Prêmio Deutsch, em 1901, cumprindo as metas de navegação aérea com um dirigível contornando a Torre Eiffel, Santos Dumont distribuiu uma parte do polpudo prêmio entre os empregados do seu hangar. A outra parte ele entregou para a prefeitura de Paris, determinando que fossem saldadas as dívidas de todos os trabalhadores franceses que tivessem suas ferramentas de trabalho penhoradas. Virou herói nos dois lados do Atlântico.
Quando morreu, em 1932, teve seu corpo exumado e o médico legista se impressionou com as dimensões físicas do coração de Santos Dumont, comparando-as “às de um bovino”. Ou seja: Alberto Santos Dumont tinha coração grande de fato. Grande e de ouro, uma vez que o órgão, conservado e preservado em uma redoma dourada, está exposto à visitação pública no Museu Aeroespacial, no Rio de Janeiro.

Sua avó sabe tudo de corações, leitor. Mas fuja. Vai que ela esteja buscando a fita métrica para descobrir o tamanho do seu?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de abril de 2014) 

terça-feira, 1 de abril de 2014

É preciso saber dizer

Conquistar uma liberdade específica é o primeiro passo no caminho da ampliação das potencialidades de manifestação da essência humana na sociedade em que se está inserido. Saber como usar essa liberdade atingida e o que fazer com ela é o segundo e mais importante passo, pois é somente dessa forma que esse direito se consolida como essencial, intocável, irrevogável, inquestionável. O mau uso de uma liberdade abre flancos para que ela seja questionada por aqueles que estão sempre à espreita, esperando pelas brechas que tornem possível o retrocesso.
Precisamos estar atentos, e a responsabilidade por manter incólume a justeza de uma liberdade conquistada cabe a todos nós enquanto conjunto social e a cada um de nós na expressão de sua individualidade diária. A reflexão vem a calhar nesses dias em que o calendário registra a transição de março para abril, efeméride que, há exato meio século, carimbava na história brasileira o golpe militar que faria descer sobre o país uma longa sombra de arbitrariedades ditatoriais cujos reflexos deletérios se fazem sentir até hoje. Ao lado da tortura, das prisões despóticas, do assassinato institucional, do aprofundamento da corrupção, da perseguição política, do estupro ao Judiciário e ao Poder Legislativo, do atropelo aos direitos constitucionais e do fomento à crise econômica, duas das crias mais perniciosas da ditadura foram a censura e a restrição à liberdade de pensamento e de manifestação de ideias e opiniões.
Foram necessários 21 anos de combate à essência da ditadura para que os direitos humanos, democráticos e fundamentais, universalmente reconhecidos como cruciais para o desenvolvimento de uma sociedade, fossem reconquistados, ao custo de vidas, cassações, deportações, perseguições etc. É preciso, agora, saber cultivar e honrar esses direitos, a fim de que jamais voltem a ser alvos fáceis para a ação dos que lucram com sua supressão.
Para que não sejamos censurados, por exemplo, precisamos saber usar o direito de expressão com maturidade, sapiência, discernimento, inteligência. Caso contrário, daremos munição ao inimigo que prefere nos ver para sempre calados. Nossa fala deve, portanto, sempre que possível, gerar diamantes. Do contrário, decidir optar pelo silêncio às vezes pode se configurar na expressão mais inteligente dessa mesma liberdade.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de abril de 2014)